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Análise literária e Resumo do livro "O Cortiço", de Aluísio Azevedo



Aluísio Azevedo (A. Tancredo Gonçalves de A.), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata. Nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913. É o fundador da Cadeira n. 4 da Academia Brasileira de Letras.

Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de d. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um rico e ríspido comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.

Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se, fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses "bonecos" que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.

A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance “Uma lágrima de mulher”, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança “O mulato”, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense, não só pela crua linguagem naturalista, mas, sobretudo, pelo assunto de que tratava: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pode fazer o caminho de volta para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.

Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção: romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.


Em 1895 encerrou a carreira de romancista e ingressou na diplomacia. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, que Aluísio adotou. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1a classe, sendo removido para Assunção. Depois foi para Buenos Aires, seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado definitivamente.

II – CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO DA ÉPOCA:

O início do século XIX no Brasil é marcado, em 1808, pela chegada da família real portuguesa, que fugia do conflito entre a França napoleônica e a Inglaterra. No Brasil, ainda, apreciava-se a arte barroca-colonial.
A transferência da corte portuguesa para o Brasil e a elevação da colônia a Reino Unido e sede do governo metropolitano renovaram o país. Nessa cidade o soberano português começou uma série de reformas administrativas, sócio-econômicas e culturais, para adaptá-la às necessidades dos nobres que vieram com ele e sua família. Assim, foram criadas as primeiras fábricas e fundadas instituições como o Banco do Brasil, a Biblioteca Real, o Museu Real e a Imprensa Régia.
No século XIX, após um crescimento contínuo da grande lavoura de exportação (cana-de-açúcar), que se confundiu com a expansão do café pelas serras e vales do interior da província do Rio de Janeiro, começaram a aparecer sinais evidentes de que a agricultura brasileira vivia uma profunda crise. Esta crise era atribuída, sobretudo, à falta de braços (pelo fim da escravidão) e de capitais, além do atraso técnico e administrativo na condução das lavouras.
A maioria dos grandes proprietários acreditava na exploração extensiva dos sistemas de produção, através da expansão das fronteiras agrícolas, abandonando as lavouras atuais quando estas não tivessem mais produtividade satisfatória e indo em busca de novas áreas reiniciando, assim, o ciclo de exploração da fertilidade dos solos. Esta era a cultura nômade de expropriação do solo brasileiro, na qual pouco se pensava nas consequências negativas dos manejos agropecuários empregados, especialmente no que diz respeito à destruição florestal.

. teorias de nova interpretação da realidade: Positivismo, Determinismo, Socialismo Científico e Evolucionismo;
· no Brasil, campanha abolicionista a partir de 1850 que culmina com a Lei Áurea em 1888;
· fundação do Partido Republicano nacional após a Guerra do Paraguai;
· decadência da monarquia brasileira;
· fim da mão-de-obra escrava e sua substituição por trabalho assalariado;
· imigrantes europeus para a lavoura cafeeira;
· economia mais voltada para o mercado externo, sem colonialismo.

III – CARACTERÍSTICAS DO ROMANCE NATURALISTA:

O naturalismo, corrente literária fundamentada em aspectos cientificistas, reflete as mudanças ocorridas nos campos econômico, político-social e cultural que explodiram em meados do século XIX.
O escritor dessa tendência analisa o indivíduo a partir dos componentes hereditários e das circunstâncias ambientais que determinam o seu comportamento, ao contrário do romântico que anteriormente procurava idealizar o homem e a natureza.
O foco do naturalismo consiste em retratar a realidade de maneira objetiva, desnudando as mazelas humanas e sociais. Daí o interesse em descrever grupos marginalizados, valorizando-se a coletividade, cada vez mais em evidência devido às transformações que se estabeleciam no cenário mundial. Podemos tomar como exemplo a Revolução Industrial que impulsionava o capitalismo e fazia surgir os grandes centros industriais, reunindo uma massa operária que inchava as cidades e que não dispunha dos recursos necessários para viver dignamente.

IV - ESPAÇO:

O uso do espaço urbano pelas personagens de “O cortiço” permite configurar a obra de Aluísio Azevedo como um romance de localização especificamente carioca. Nele, são flagradas a cidade e a sociedade em estado de mutação, quando se adapta para o ambiente urbano a dicotomia de casa grande e senzala, agora traduzida pelos contrastes simbolizados pela oposição entre cortiço e sobrado. Assim, a preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo, fornece um painel da cidade, em momento de profunda transformação social, cultural, humana. Graças à minuciosa pesquisa que empreendeu, Aluísio Azevedo transformou seu romance em um documentário não só sobre a acumulação de capital como também sobre a cidade do Rio de Janeiro, através da vida, trabalho, moradia e lazer de seus habitantes, sejam eles pertencentes às camadas aristocráticas ou às populares.
Pode-se começar a proceder a uma análise sociológica de “O Cortiço” pelo exame dos espaços físicos: o cortiço e o sobrado onde seu enredo se desenvolve, buscando compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente, bem como as relações sociais presentes na obra sob a ótica determinista de Aluísio Azevedo.
“Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação [...] Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem". (Aluísio Azevedo. “O Cortiço”, cap. I, p.21).
“Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separada desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado''. (Idem, ibidem, cap.I, p.13).
O espaço tomado como instrumento de análise apresenta vários aspectos. Dentre eles, destaca-se a noção de espacialidade dimensional que pode ser mensurável e divide-se em vertical e horizontal.   A ideia de verticalidade se relaciona com o espaço divino ou sobrenatural, a noção de horizontalidade opõe-se a verticalidade, uma vez que a horizontalidade é própria do espaço humano ou natural.
Dessa forma, o romance naturalista busca muito mais que compor uma narrativa, mas, projetar as personagens e suas ações numa posição em que os espaços falam por si só carregando toda ideologia determinista de que o homem é produto do meio.
De início, constata-se um espaço amplo e complexo, que pode ser inicialmente caracterizado pela função específica para o qual foi construído: habitação popular, o que fica explícito pelo “frontispício” de sua construção, sinalizando também para o teor das relações humanas que se dão em seu bojo, pelo próprio aspecto material de sua “auto-identificação”:

“Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia:
Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”.
                                                                                (AZEVEDO, 2000: 26)

CORTIÇO:

Seus elementos têm uma constituição primária e estão ao nível da natureza e do instinto. No espaço de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das personagens caindo no código antirromântico de despersonalização; para o narrador, no Cortiço, já não se distinguem homens de animais, objetos ou vegetais.

SOBRADO:

Os integrantes do espaço sobrado diferentemente da comunidade do Cortiço que buscam no instinto e na violência meios para conseguir seus objetivos, utilizam-se de regras culturalmente complexas e definidas para atingir suas metas. Nota-se nesta citação o uso das máscaras sociais e o uso de regras definidas culturalmente como forma de possuir o bem que se almeja.
Miranda é o representante da elite burguesa do século XIX, sua condição social o diferencia das classes baixas, sobretudo de João Romão que apesar de deter o capital não participa da vida em sociedade. Com Miranda, João Romão entende que não basta ter dinheiro, é preciso ostentar uma vida reconhecida e ativa na vida burguesa.
Toda movimentação de Romão, é para sair do solo puramente biológico e instintivo em que se agita o cortiço e entrar numa organização social regida por um sistema jurídico e político representativo da Cultura [...] representado pelo espaço do Miranda.
Para imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias mudanças na estalagem, que ostenta depois das reformas com ares aristocráticos.
O cortiço muda, perdendo seu caráter desorganizado e miserável para se transformar na vila São Romão, superando em estrutura e beleza o sobrado do Miranda.

V – TEMPO:

O tempo narrativo acontece no final o século XIX e a narração é linear, ou seja, predomina nele o que chamamos de tempo cronológico, linearidade ou diacronia temporal. Essa linearidade, no entanto, é rompida vez ou outra com a inserção de alguns flashbacks, rememorações ou digressões. Essas ocorrências não colaboram para a quebra da referida linearidade e o romance, portanto, deve ser considerado cronologicamente disposto.
Aliás, o romance inicia-se com um flashback para explicar como João Romão iniciou seus negócios.

VI - LINGUAGEM:

Uma análise estilística apresenta a linguagem de O Cortiço, em sua plurivalência de nacionalidades: mostra como o francês, o italiano, o português de Portugal, o falar do cortiço, o falar dos salões constituindo conjuntos que integralizam a língua brasileira num sentido mais amplo.
Sua língua é mestiça como suas personagens e se espalha pelo simples e pelo complexo. Por aí se poderia chegar a tocar de novo no problema da ideologia que configurou o romance. Ideologia esta que tanto mais se configura quanto mais se sabe que a arte de Aluísio se voltava para o receptor. Sua produção tinha um endereço certo: o jornal, o teatro e uma grande massa de leitores.

VII – FOCO NARRATIVO:

O foco narrativo é em terceira pessoa, muito comum à escola literária realista-naturalista. Fica mais fácil, dessa forma, relatar de maneira objetiva os fatos, os acontecimentos, e fazer a denúncia social de maneira isenta e impessoal.
Além do narrador do tipo observador, pode-se encontrar também o narrador onisciente, que nos traz informações sobre o estado de espírito das personagens.

VIII – PERSONAGENS:

Quando Aluísio de Azevedo queria compor cenários, criar personagens, estereótipos, tipos humanos fazia um laboratório em lugares aos da sua imaginação, conversava com as pessoas que ali viviam, envolvia-se com seus problemas, seus hábitos, sua origem e ia montando o quebra-cabeça de sua obra. Era o crítico que, impiedosamente, compunha a sinfonia de pessoas de classes sociais inferiores, marginalizados, discriminadas; exercendo seus temas favoritos: traição, as taras sexuais, os preconceitos raciais, as patologias sociais.
Muitas vezes, porque era um desenhista que se esmerava em tudo quanto fazia, compunha cenas e personagens em papel-cartão, estudando quais aspectos seriam mais realistas como acontecimentos, colocando tudo diante de si como se fossem acontecimentos vívidos e planejando, a partir de seus desenhos, a continuidade das histórias que inventada a partir da vida.
Aluísio Azevedo sofreu larga influência do francês Émile Zola, cuja qualidade máxima é, por excelência, representar a realidade com rigor científico. Da personagem João Romão, por exemplo, traça um perfil que o coloca como uma metonímia de todas as criaturas que imigram, sofrem e perdem-se no sentido de apenas possuir.   
Em “O cortiço”, ocorre sistematicamente um fenômeno chamado zoomorfização (animalização) dos seres humanos. O crítico literário Antonio Candido, no texto “De cortiço a cortiço”, presente no livro “O discurso e a cidade”, observa que, no Naturalismo, existe “uma tendência de conceber a vida como a soma das atividades do sexo e da nutrição, sem outras esferas significantes”. Sendo assim, não há como negar que na escola literária em questão o ser humano é flagrado no conjunto social a que pertence, com ênfase nas baixas classes sociais, e, ali, é exposto ao leitor da forma mais primitiva e animalizada: comem, bebem, fazem sexo, brigam, matam e morrem.
São criaturas grosseiras, seduzidas pelos instintos, condenadas a refletir em seus comportamentos o universo coletivo do ambiente que habitam; por isso, o narrador apresenta-nos os moradores daquele local e seus vícios, aproximando-os do mundo animal: sensualidade, preguiça, instintos à flor da pele.
É importante ressaltar, ainda e principalmente, que o cortiço não é apenas um ambiente, espaço onde os acontecimentos se dão. De certa forma, especial e insistente, é tratado pelo narrador como a principal personagem do romance.

IX – RESUMO:

“O cortiço” é composto por 23 capítulos, numerados em romanos, sem títulos disponíveis.
      
“O CORTIÇO”

I
“João Romão foi, dos treze aos vinte cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.”

João Romão trabalhou duro e perseverante; economizou e passou duras privações. Seu objetivo único era enriquecer e todas as suas atitudes direcionavam a esse empenho.

“Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.”

Bertoleza também trabalhava pesado dia e noite e pagava a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha quase o montante para comprar sua alforria. Um dia, o seu companheiro depois de puxar uma carga superior às suas forças, caiu “morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.”
João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça e aproximou-se de Bertoleza. A crioula confiou em João Romão e contou-lhe a sua vida de aflições e dificuldades. Em seguida, “segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.”
João Romão passou a ser o caixa, o procurador e o conselheiro de Bertoleza. Era ele quem administrava todas as suas economias e quem se encarregava de pagar ao “velho cego” a dívida mensal. Abriu-lhe uma conta corrente e quando a quitandeira necessitada de dinheiro pedia ao “Seu João” e ele debitava de um caderno em cuja capa de papel pardo lia-se mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
Bertoleza confiava plenamente em João Romão e quando “deram fé estavam amigados”.
João Romão propôs morarem juntos e ela aceitou de prontidão, porque, “como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.”
O português comprou um terreno ao lado da venda com as economias da amásia e construiu uma casinha dividida entre duas partes: a parte da frente destinada à quitanda e nos fundos, um dormitório que ele ajeitou com os cacarecos de Bertoleza.
O vendeiro prometeu que a vida dela ia melhorar e que ela estaria livre em pouco tempo, “eu entro com o que falta.”
Uma semana depois, João Romão voltou com uma folha de papel toda escrita, dizendo:

“– Você agora não tem mais senhor! Declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre lágrimas agradecidas.”

Entretanto, a carta de liberdade era falsa, era obra do próprio João Romão, que nem sequer teve despesas de comprar um selo novo utilizando um selo já usado em outro documento.

“O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo.”

João Romão, por sua vez, só ficou tranquilo quando soube três meses depois sobre a morte do velho. É certo que, com a morte do velho, os herdeiros desses tinham poder sobre a escrava: “dois pândegos de marca maior que, empolgada a legítima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte.”
Bertoleza trabalhava sem descanso, cuidando da casa, da venda e da quitanda: limpava, costurava, vendia, cozinhava....Não havia descanso e nem passeios. Depois de um ano morando juntos, João Romão adquiriu num leilão algumas braças de terra situado ao fundo da taverna e sem perda de tempo, ergueu três casinhas.
“Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraíam o material das casas em obra que havia por ali perto. (...) Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros”
Essas três casinhas foram o começo de um grande cortiço que ali se fixou. O vendeiro “ia conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores.”
“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça.”
João Romão contratou alguns homens para trabalharem na pedreira e seu lucro dobrou.
Nessa época, um negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de tecidos por atacado, Sr. Miranda, sua esposa Dona Estela e sua filha, Zulmira, compraram o sobrado que ficava ao lado da venda do Sr. Romão.  Sr. Miranda contava que Dona Estela não suportava mais viver no centro da cidade e que sua filha Zulmira, precisa de espaço para crescer. Mas, a verdade é que ele queria afastar Dona Estela dos seus caixeiros.

“Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério (...)”
Não se separou. Afinal, ela era rica e além de que, “um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a ideia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português que já não tem pátria na Europa.”
Passaram a dormir separados, não comiam juntos e quase não conversavam. Odiavam-se e a situação agravou-se com o nascimento de Zulmira.

“Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser seu pai.”

Uma noite, Miranda sentiu desejo incontido foi até o quarto de Estela.

“Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda não pode resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo.”

No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada tivesse acontecido entre eles na noite anterior. Depois de um mês, Miranda, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher.

“Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. (...) Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio com verdadeira satisfação de animal no cio. E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço gutural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.”

Viveram anos muito bem casados; mas, agora que o Miranda já não tinha tantas crises que o levavam ao quarto de Estela, ela passou a dar corda aos caixeiros do marido.
O sobrado era bom, faltava-lhe um pouco de quintal. Miranda procurou João Romão para negociar algumas braças daquele terreno do fundo que ia até a pedreira.
Discutiram e João Romão afirmou que queria comprar o pequeno quintal de Miranda. A partir daí, travou-se uma rixa entre Miranda e João Romão: Sr Miranda não fazia o muro do seu quintal e João Romão esperançava em adquirir aquele terreno e construir uma estalagem.
Romão passou a frequentar leilões de materiais de construções e adquiriu um arsenal de materiais de segunda mão e usados que misturava com aqueles outros, roubados.
Uma noite João Romão conversava na cama com Bertoleza:
“– Deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mais seis, oito, todo o quintal e até o próprio sobrado talvez!”
João Romão visava só aumentar seus bens. Recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que ninguém compraria; vendia todos os ovos que suas galinhas produziam e alimentava-se dos restos da comida dos trabalhadores.

“E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer (...).”

Os seus negócios iam bem. O bairro povoava-se e expandia-se rapidamente e a maioria dos trabalhadores da região comia à Casa de pasto que João Romão arranjara aos fundos da sua varanda e frequentavam à sua taverna. Passou adquirir mercadorias da Europa: o vinho que vinha agora de Portugal às pipas, de cada uma fazia três acrescentando-lhes água e cachaça e despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caixões de fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias.
De uma simples taverna transformou-a num grande bazar; criou depósito; aboliu a quitanda e transferiu o dormitório.

“Por ali não se encontrava jornaleiro (operário), cujo ordenado não fosse inteirinho parar às mãos do velhaco.”

Emprestava-lhes dinheiro e cobrava juros de 8% ao mês, um pouco mais que os penhores.
As casinhas do cortiço enchiam-se, logo. Os empregados da pedreira davam preferência morar perto do trabalho.
Miranda ficava furioso: o cortiço desvalorizava o seu sobrado. Enfim, Miranda mandou levantar o muro.
Romão mandou colocar uma tabuleta na frente: “Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”.
As casinhas eram alugadas por mês, num total de 95 casinhas e as tinas por dia; tudo pago adiantado. As moradoras do cortiço tinham direito a lavar sem pagar.

“Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.”

“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.”

                                                           II
Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia e isso, irritava Sr. Miranda que se remoia a pensar que: “aquele tipo! Um miserável, um sujo, que não pusera nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa com uma negra!”

“(...) Tinha inveja do outro, daquele outro português que fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais rico três vezes do que ele, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum fazendeiro freguês da casa!”

“(...) Miranda, que se supunha a última expressão da ladinagem e da esperteza (...) ele, que se tinha na conta de invencível matreiro, não passava afinal de um pedaço de asno comparado com o seu vizinho!”

“(...) No fim de contas qual fora a sua África?”

Quanto à Zulmira, “Miranda nem sequer gozava o prazer de ser pai e a pobre criança nada mais representava que o documento vivo do ludíbrio materno, e o Miranda estendia até a inocentezinha o ódio que sustentava contra a esposa.”(...) Feliz e esperto era o João Romão! (...) esse, sim, que era moço e podia ainda gozar muito, porque quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe saísse uma outra Estela era só mandá-la para o diabo com um pontapé! Podia fazê-lo! Para esse é que era o Brasil!”
Esses pensamentos levaram Miranda a um novo ideal: um título. Lembrou-se de que Estela é que possuía sangue nobre e, que ele, por sua vez, se não o tinha herdado, trouxera-o por natureza própria, o que devia valer mais ainda; e desde então principiou a sonhar com um título de barão; seria um empreendimento que ninguém lhe tomaria e um dinheiro de sua esposa, que ele empregaria.
Mudou seus comportamentos e passou a cumprimentar o seu vizinho. Depois, abriu a sua casa e deu uma festa.
Zulmira tinha “doze para treze anos e era o tipo acabado da fluminense; pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das pálpebras e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom úmido das flores noturnas, uma brancura fria de magnólia; cabelos castanho-claros, mãos quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da mãe, dentes pouco mais claros do que a cútis do rosto, pés pequeninos, quadril estreito mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.”
Nessa época chegou de Minas, Henriquinho, garoto de 15 anos que veio fazer preparatórios para o curso de Medicina e ficará hospedado no sobrado. Era o filho de um fazendeiro importante que dava lucros à casa comercial de Miranda.
Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de menina. Era estudioso e bem econômico. Estela demonstrou carinho quase maternal pelo garoto e passou a tomar conta da sua mesada. Às vezes, Henrique passeava com Estela, Zulmira e um moleque, o Valentim e acompanhava-as às festas em casa das amigas.
A criadagem da casa de Miranda era composta por: Isaura (mulata ainda moça, moleirona e tola), Leonor (negrinha virgem, muito ligeira e viva, lisa e seca como um moleque, conhecedora da vasta tecnologia da obscenidade) e Valentim (filho de uma escrava que foi de Estela e a quem esta havia alforriado, era protegido de Estela).
Além de Henriquinho, havia outro hóspede, o velho Botelho. Era um pobre-diabo, quase 70 anos, antipático, cabelo branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do mesmo teor, muito amarelento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o tamanho da pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo com o seu nariz curvo e com a sua boca sem lábios. Viam-se-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam desgastados até ao meio.

“Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu Braga enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desilusões, cheio de hemorróidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava a sombra do Miranda, com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a princípio por acaso e mais tarde por necessidade.”
Botelho vivia criticando as ideias da época; principalmente, quando a discussão era o movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco.
“E, para individualizar o objeto do seu ódio, voltava-se contra o Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria.”
A sua paixão era o militarismo, comovia-se com a presença de um oficial fardado e quando ouvia tocar na rua a corneta ou o tambor conduzindo um batalhão, quando dava por si, fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Irritava-se com os mimos dispensados ao Valentim e conhecia todas as falhas de Estela, pois era confidente de Miranda e concordava que os sérios interesses comerciais estavam acima de tudo.
“– Uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, você o que devia era nunca chegar-se para ela...
- Ora! Explicava o marido. Eu me sirvo dela como quem se serve de uma escarradeira!”
Mas por outro lado, quando ouvia Estela reclamar do marido, resplandecia de contente. Dizia, ela:
 “– Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste! Juro-lhe, porém, que, se consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é porque entendo que paga mais à pena ceder do que puxar discussão com uma besta daquela ordem!”
Botelho mantinha-se fiel aos dois. Um dia surpreendeu “Estela entalada entre o muro e o Henrique” e disse:

“– Isso é uma imprudência o que vocês estão fazendo!...Estas coisas não é deste modo que se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa...(...) Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar com a vida de cada um!...A senhora está moça, está na força dos anos; seu marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah!isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!...Até certa idade todos temos dentro um bichinho-carpinteiro, que é preciso matar, antes que ele nos mate!”

Depois, Botelho aproximou-se de Henrique e segredou-lhe em tom protetor:

“– Não torne a fazer isto assim, que você se estraga...Olhe como lhe tremem as pernas! [...] Só abrirei o bico se você me der motivo para isso...não se meta com donzelas, entende?...São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em apuros! Agora quanto às outras, papo com elas!”

E acrescentou:

“– Fique então sabendo de que não é só a ela que você faz o obséquio, mas também ao marido: quanto mais escovar-lhe você a mulher, melhor ela ficará de gênio, e por conseguinte melhor será para o pobre homem, coitado! Que tem já bastante que se aborrecer lá por baixo, com os seus negócios, e precisa de um pouco de descanso quando volta do serviço e mete-se em casa! E creia que lhe falo assim, porque sou seu amigo, porque o acho simpático, porque o acho bonito!. Em seguida, acarinhou-o e Henrique fugindo-lhe das mãos, afastou-se com um gesto de repugnância e desprezo.”

                                                           III
“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. [...] Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choro abafados de crianças que ainda não andam...[...] Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.”

Odia começava já “sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa [cheia de força] de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.”

Das janelas do sobrado do Miranda apareceu a Isaura, começando a limpeza da casa e, em seguida, a Leonor. E o trabalho principiava: o padeiro apareceu na estalagem; a fábrica de massas italianas engrossou o barulho com o seu arfar monótono de máquina a vapor; algumas lavadeiras começaram a lavar; mercadores ofereciam carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; os mascates com suas quinquilharias; o sardinheiro e o carroção de lixo, e, de longe rompiam os fados portugueses e as modinhas brasileiras
Leandra, conhecida por “Machona”, foi a primeira que se pôs a lavar. Era uma portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha três filhas: uma filha casada e separada do marido, Ana das Dores, a “das Dores”; outra uma donzela ainda, a Neném e um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos. Somente a “das Dores” não morava no cortiço. Ninguém sabia sobre o passado da Machona e seus filhos não se pareciam uns com os outros.
Neném, 17 anos, espigada, franzina, forte e virgem. Boa engomadeira e sabia fazer roupa branca de homem com muita perfeição.
Em seguida, chegou a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher do soldado Alexandre, um mulato de 40 anos, soldado de polícia, pedante, de grande bigode preto, queixo sempre barbeado, um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. Quando estava de descanso, ele era sociável, mas quando vestia o uniforme ninguém mais lhe via os dentes e então a todos falava com autoridade. Tinham filhos pequenos e um deles, a Juju, vivia com a madrinha Léonie, francesa e prostituta.
Junto dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro chamado Bruno, portuguesa pequena, de carnes duras, com fama de leviana.
Seguia-se a Paula, conhecida por “Bruxa”. Era uma cabocla velha, meio idiota, feiticeira, extremamente feia, grossa, triste, de dentes cortados à navalha e cabelos lisos e escorridos. Também, a Marciana, mulata séria e muito asseada que quando estava com raiva punha-se a limpar a casa e se a raiva fosse muito grande, lavada o chão da sala com muita fúria, por isso a casa estava sempre úmida. E sua filha Florinda de 15 anos, pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes e olhos luxuriosos de macaca. Para elas, o vendeiro fazia pequenas concessões nas compras e não roubava no preço das mercadorias. Florinda era virgem e, embora “toda ela estava a pedir homem”, não cedia às investidas de João Romão.
Em seguida, via-se a Dona Isabel, uma pobre mulher comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de francês.

“Tinha uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda, bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos engolidos pelas pálpebras.”

Vestia-se sempre de preto e a única herança que lhe restara era uma caixa de rapé de ouro. Sua filha, a Pombinha, era a “Flor do cortiço”. Era bonita, loira, muito pálida, nervosa, enfermiça e com modos de menina de boa família. Tinha um noivo, João da Costa, moço do comércio, estimado do patrão e dos colegas, com muito futuro.
O casamento ainda não se realizara porque Pombinha aos seus 18 anos de idade “não tinha ainda pago à natureza o cruento tributo da puberdade” [menstruação], daquele casamento dependia a felicidade de ambas, afinal o Costa era bem empregado e podia restituí-las ao seu antigo círculo social. A mãe rezava todas as noites pedindo essa graça a Deus, mas nunca consentiria que sua mulher casasse antes de “ser mulher”.
No cortiço essa história era conhecida por todos e todos davam conselhos e cumprimentavam o Costa com ares de piedade por essa má sorte.
Pombinha era muito querida no cortiço: escrevia as cartas, lia o jornal, tirava as contas e fazia a lista para as lavadeiras.
O próximo era o Albino: sujeito afeminado, fraco, cabelos castanhos, deslavado e pobre que lhe caía, numa só linha, até ao pescoço mole e fino. Vivia entre as mulheres e estas o tratavam como se fosse do mesmo sexo; faziam-lhe confidências que não fariam a um homem. Era sempre ele que reconciliava uma briga de casal ou entre mulheres. Guardava dinheiro o ano todo e no carnaval, fantasiava-se de dançarina e ia passear pelas ruas e dançar nos bailes dos teatros. Vivia sempre asseado, não fumava, bebia espíritos e trazia sempre as mãos geladas e úmidas.
Enquanto as lavadeiras faziam seus serviços, por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira.
Surge um rapaz que vem perguntar sobre o paradeiro de Rita Baiana. As lavadeiras discutem sobre a vida de Rita Baiana: Leocádia acredita que ela deve estar de folia com o Firmo; Augusta acha que é uma irresponsável, afinal com tanta roupa para lavar e ficar na vadiagem, ”parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado”
Quando davam nove horas o movimento da venda duplicava. Os operários das fábricas chegavam para o almoço e Bertoleza ia e vinha de uma panela à outra, fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores. O cheiro do azeite predominava; o parati circulava por todas as mesas; discutia-se a berros e depois “daquela comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar”.
Um português de seus trinta e cinco anos a quarenta anos, alto, de ombros largos, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, pescoço de touro e cara de Hércules, na qual os olhos humildes com os olhos de um boi de canga [submisso] exprimiam bondade surge para conversar com João Romão.

                                                           IV
Tratava-se de Jerônimo e foi indicado por Machucas para trabalhar na pedreira de João Romão. Jerônimo pede 70 mil réis e João Romão diz que esse ordenado é impossível pagar. Jerônimo alega que vale a pena pagar um pouco mais a um trabalhador bom a correr riscos como já havia acontecido na pedreira de João.
João Romão acompanha Jerônimo até a pedreira e no caminho passam pelas lavadeiras que já tinham almoçado e retornado aos seus afazeres. Ao encontrarem Florinda, João aproveita de dá-lhe uma palmada nas nádegas. Na pedreira encontravam-se trabalhadores por toda a parte, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. Jerônimo critica a maneira que estão lidando com a pedra e apresenta argumentos técnicos que com certeza, João Romão tiraria mais lucros, inclusive dispensando alguns trabalhadores que não executavam seus serviços corretamente e substituindo-os por bons trabalhadores.
João Romão contratou Jerônimo nas condições dele se mudar para o cortiço e fazer as suas compras na venda. E pensou lá de si para si: “Os meus setenta mil réis voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica em casa!”

                                                           V
No dia seguinte Jerônimo e sua esposa Piedade de Jesus mudaram para o cortiço.
Piedade aparentava trinta e cincos anos, boa estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes poucos alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona [boa e boba], de uma simpática expressão de honestidade simples e natural. Chegaram ambos à boléia da andorinha [carro de mudança] e enquanto descarregavam seus pertences eram acompanhados por comentários e olhares curiosos dos moradores.
Jerônimo viera de Portugal com a esposa e uma filha pequena tentar a vida no Brasil. Trabalhou por dois anos numa fazenda e “se retirou de mãos vazias e uma grande birra pela lavoura brasileira. Para continuar a servir na roça tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com eles no mesmo meio degradante encurralado como uma besta, sem aspirações, nem futuro, trabalhando eternamente para o outro.” 
Em poucos meses se apoderava do seu novo ofício: o de quebrador de pedras e ganhou confiança de seu novo patrão. A vida ia bem, colocou sua filha numa escola e sua casinha era a mais respeitada e decente do lugar. Mas, o patrão morreu e os herdeiros fizeram uma reforma na pedreira que desgostou Jerônimo. Jerônimo, então foi procurar João Romão.
João Romão estava contente com o desempenho de Jerônimo. Com o seu exemplo os companheiros tornaram-se mais sérios e zelosos. No fim de dois meses João Romão vibrava com a contratação de Jerônimo.
Jerônimo também ganhou a amizade e a confiança dos moradores do cortiço. Era visto como superior e procurado como confidente e conselheiro. Trabalhava o dia inteiro e só voltava à casa ao cair à tarde, faminto e cansado. Piedade preparava uma comida típica da terra deles e depois ficavam em paz conversando sobre o futuro de Marianita que estava no colégio e que só os visitava aos domingos e dias santos. Depois, tocava na sua guitarra, os fados de sua terra, transparecendo claramente as saudades de sua pátria.

                                                           VI
Domingo no cortiço...as tinas abandonadas; as casinhas fumegando um cheiro bom de refogados de carne fresca; alguém declamando os versos de “Os Lusíadas”, outros lendo jornais; na venda trabalhadores bebendo vinho e cervejas e todos de roupa mudada depois de uma semana no corpo.             
Nesse momento, aparece Rita Baiana que estava ausente há meses, durante a qual só dera notícias suas nas ocasiões de pagar o aluguel do cômodo. Todos correm ao seu encontro querendo saber notícias.

“Não vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.”

Contou que estava em Jacarepaguá com o Firmo e que agora o namoro era sério. Leocádia pergunta-lhe por que ela não casa com o Firmo?

“– Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!”

Falava a todos e para cada um tinha um comentário, um riso ou um carinho. Inclusive, para com o velho Libório, seco que parecia mumificado pela idade.   
Para maior alegria dos moradores, Rita Baiana avisa que à noite teriam pagode. Depois, pergunta quem eram “aqueles jururus que estão agora no 35”?

                                                           VII
Às três da tarde, chegou o Firmo acompanhado pelo seu amigo Porfírio, trazendo violão e cavaquinho.                  
Firmo era um mulato pachola [cheio de si], delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio [trapaceiro] de marca, pernóstico; só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos, pescoço estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encaracolada negra, dividida ao meio da cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grandes gaforina [topete] por debaixo da aba do chapéu de palha, que ele punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda. Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado, calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe engoliam os pezinhos secos e ligeiros. Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e perfumado; à boca um enorme charuto e na mão um grosso porrete de Petrópolis. Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa boa pândega com a Rita Baiana ou com outra. Era carioca, militara dos 12 aos 20 anos em diversas maltas de capoeiras, ajudara a decidir eleições nos tempos do voto indireto e buscava um lugar de contínuo numa repartição pública e receber setenta mil réis mensais pelo trabalho das nove às três.
Firmo conheceu Rita Baiana assim que ela chegou da Bahia junto com a mãe. Logo, a mãe morreu e Firmo cuidou de Rita Baiana. Apaixonou-se por ela, mas por causa de ciúmes acabaram se separando, e ela, apesar de volúvel como toda mestiça, não o esquecia e acaba reatando o seu namoro.
E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão. Defronte da porta de Rita surgiam diversos moradores do cortiço, jornaleiros de baixo salário, gente miserável, que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre eles um só triste. Até Libório apareceu com a cara esfomeada. Rita convidou-o para entrar e deu-lhe de comer e de beber. O velho avarento comeu até engasgar com um pedaço de carne e vomitar sobre a mesa. Albino, por sua vez, não comia nada, tudo lhe fazia mal. Rita disse-lhe que esses sintomas eram semelhantes à gravidez.   
Do sobrado do Miranda também vinha muitos barulhos. Saía de lá gritarias de hurras e desarrolhar de champanhes.
Leocádia vira Dona Estela e Henrique agarrados...
Nisso, escutam uns versos saudosos acompanhados por uma guitarra da porta do 35:
“Minha vida tem desgostos,/Que só eu sei compreender.../Quando me lembro da terra/Parece que vou morrer.../Terra minha, que te adoro,/Quando é que eu te torno a ver?/Leva-me deste desterro;/Basta já de padecer.”
A tristeza daqueles versos começou a abater os ouvintes, mas a música crioula retomou a alegria, “eram lúbricos [sensuais] gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.”
Jerônimo e Piedade aproximaram-se da roda e observam Rita dançando “feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher [...] rebolando as ilhargas [ancas] e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando.”
Jerônimo via naquela mulata a “síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti [fruto doce] mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa [pegajosa], a muriçoca [mosquito] doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas [moles] pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas [insetos usados pela medicina como afrodisíaco] que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.”
Piedade se retirou e Jerônimo não deu pelas horas, já pela madrugada viu a Rita sendo levada para o quarto pelo seu homem e ficou sozinho no meio da estalagem e sentiu “formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração”.

                                                           VIII
No dia seguinte Jerônimo voltou na hora do almoço e caiu de cama. Pediu para Piedade avisar João Romão que não trabalharia mais naquele dia. A notícia espalhou-se e depois de receber muitas visitas e expulsá-las, apareceu Rita Baiana. Jerônimo ao vê-la, sorriu.
Rita ofereceu-se fazer uma xícara de café bem forte com um gole de parati (cachaça) para curar o português.
Piedade voltou preocupada com o estado de saúde do marido e ele trata-a agressivamente, negando tomar o chá, o escalda-pés e dispensando o seu carinho. A esposa dedicada acreditou que fosse por causa da doença. Jerônimo secamente manda que Piedade volte para a tina, lavar as roupas.
“Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.”
A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no íntimo, ressentida contra aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro sutil e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.
Rita retornou ao quarto do doente. Jerônimo passou o braço em sua cintura e procurou com a mão direita segurar a dela, queria agradecer-lhe, mas um desejo ardente dominou o seu corpo.
Nesse momento, ocorreu um escândalo no pátio da estalagem.
Henrique que, da janela do sobrado gesticulava-se eroticamente à Leocádia, naquele dia excedeu-se: mostrou-lhe um coelhinho que ela cobiçou. E, através da mímica, declarou com um gesto a condição para a aquisição do coelho.

“Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que a esperasse por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos. [...] Leocádia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve.
- Espera! Preciso tirar a saia; está encharcada!
- Não faz mal! Segredou ele, impaciente no seu desejo.
- Pode-me vir um corrimento!”

Leocádia lançou-se de costas ao chão com as coxas abertas e o estudante atirou-se, sentindo-lhe à frescura da carne da lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho. A lavadeira pede-lhe que faça um filho, para que ela pudesse alugar-se de ama de leite, pois estavam pagando muito bem. Enquanto, pedia para que o estudante fosse mais devagar, pois podia matar o bichinho.

“Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes.”

Quando, Henrique viu a figura do Bruno, saiu correndo e o coelho que, vendo-se livre, ganhou pela outra banda o caminho do capinzal.
Bruno perguntava com quem a esposa se esfregava e chamava-a de vaca, no mesmo tempo que a esbofeteava e dava-lhes pontapés. Leocádia, nesse momento, pegou uma pedra grande e ameaçava Bruno.
Bruno expulsa Leocádia de casa e esta aponta a barriga mostrando como ela ia ganhar a vida. Irritado, Bruno lança pela janela os pertences da esposa infiel e, o cortiço participa assistindo à cena e com comentários paralelos.
Nesse momento, um irmão do Santíssimo entra na estalagem pedindo uma esmola para a cera do Sacramento. Leocádia arremetendo-se contra a porta de sua casinha, que Bruno havia acabado de fechar, arrebenta-a, indo ela cair lá dentro de barriga para cima.
Os moradores riam e ela raivosa atirava cada um dos seus pertences.
Alexandre chega para acalmar a situação e pede para que o Bruno deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação. Ele alega que pegou a esposa em pleno adultério e a esposa nega em lágrimas. Rita Baiana aproxima-se e retira Leocádia do local.

                                                           IX
Passaram-se semanas e uma transformação, lenta e profunda, operava-se em Jerônimo. A sua energia afrouxava lentamente; fazia-se contemplativo e amoroso.

“A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição; para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se vencido às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros. E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. [...] Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos...”

Piedade de Jesus, no entanto, conservava-se inalterável, sem conseguir, à semelhança do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova pátria que adotaram e estava triste porque Jerônimo fazia-se outro e evitava-a. Temia que Jerônimo não a “queria para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa”. Até que esse dia chegou. Jerônimo alegando estar com calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde então, não dormiram mais ao lado um do outro. Dias depois, armou a rede defronte da porta de entrada. Em outro dia, reclamou que Piedade devia tomar banho todos os dias e mudar de roupas. Ela começou a chorar e Jerônimo ralhou com ela.
Piedade tinha certeza do interesse do marido por Rita Baiana. Ele não passava pelo nº 9 sem parar e prosear com a mulata. Falavam sobre a saúde, sobre Leocádia que estava grávida. Nas noites de samba era o primeiro a chegar e o último a sair. Durante o pagode ficava de queixo bambo ao ver dançar a mulata.
Piedade consultou Dona Paula para fazer algo que trouxesse Jerônimo de volta.    A Bruxa ensinou-lhe uma simpatia: banhasse todos os dias e desse a beber ao seu homem, no café pela manhã algumas gotas das águas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regime não produzisse o desejado efeito, então cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e lhos ministrasse depois da comida.
Firmo também se preocupava com Rita. Ele morava num cômodo na oficina em que trabalhava e só ficavam juntos aos domingos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de pândega. Um dia fora vê-la fora de hora e encontrou-a conversando com Jerônimo. No jantar ficou de mau humor e recordou-se de suas façanhas de capoeiragem e das mortes acumuladas.
Rita avisou Jerônimo de que se acautelasse.
Nesse dia, ocorreu outro escândalo no nº 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda. Marciana percebera que o fluxo menstrual da filha estava atrasado e naquele dia, viu a filha vomitar. Marciana chamou D. Paula que examinou a menina e confirmou que era gravidez. Em seguida, partiu aos murros em cima da filha. A menina fugiu pela janela e agrupou-se com os moradores que atraídos pelos gritos estavam na porta do nº 12. Pressionada pela mãe, Florinda confessou que foi o Domingos, o autor de sua desgraça.
Marciana arrastou a filha e acompanhada por um grupo de moradores até a porta lateral da venda e gritou por João Romão.

  “– Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela”
Florinda confirmou que foi o Domingos o responsável: “um dia de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...”

As pessoas foram posicionando-se e principiaram os comentários, os juízos pró e contra o caixeiro, enquanto Domingos negava-se a casar com Florinda. Os moradores fizeram um cerco para evitar que Domingos fugisse e ameaçavam chamar a polícia.
João Romão ordenou que Domingos não saísse naquele momento e foi ao terreiro comunicar que o rapaz estava disposto a casar-se com Florinda.

“E, se não casar, a pequena terá o seu dote!”
    
João Romão, em seguida, dispensou o caixeiro “sem acertar as suas contas”, afirmando que o saldo do funcionário não chegava para pagar o dote da rapariga.
À noite, Augusta e Alexandre, receberam a visita da comadre, Léonie e a afilhada Juju.
Léonie era prostituta de casa aberta, mas prezava de respeito da comadre e de todos do cortiço. A admiração por Léonie devia à sua generosidade e à impressão deslumbrada que ela causava com seu luxo, sua extravagância e seus hábitos afetados.
Piedade ao ver Léonie comenta que a roupa branca da madama era rica como a da Nossa Senhora da Penha; Nenen, disse que a invejava; Albino contemplava-a em êxtase e Rita Baiana oferece rosas declarando que: “(...) esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações! Livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!”
Enquanto isso, Juju recebia elogios: “rica pequena!”; “é um enlevo olhar a gente pro demoninho!”; “é mesmo uma lindeza de criança!”; “uma criaturinha dos anjos!”; “uma boneca francesa!”; “uma menina Jesus!”
Léonie perguntou sobre a Pombinha e demonstrou indignação ao saber que a menina estava comprometida. Mandou buscar cervejas e quando Pombinha chegou, recebeu-a com exclamações de agrado, beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.

“E uma amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras.”

Léonie convida Pombinha e sua mãe para jantarem no domingo em sua casa e cochicha que: “– Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?”  

                                                           X
O sobrado estava em preparos para o Miranda receber seus convidados, por conta do seu título de Barão do Freixal. E, no cortiço circulava a notícia de que Domingos desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o substituía ao balcão. Marciana foi queixar-se ao João Romão e ele afastou-se, indiferente, afirmando que não “podia trazê-lo pendurado ao pescoço!”
Mãe e filha passaram a tarde inteira procurando seus direitos e voltaram arrasadas para a casa, logo que se inteiraram da escassez de recursos de ambas as partes. Marciana para afastar sua raiva põe-se a lavar a casa e Florinda começou a chorar.

 “– Agora deste para chorar, hein? Mas na ocasião do relaxamento havias de estar bem disposta!”

Em seguida, precipitou-se sobre a filha com um pedaço de madeira. Florinda foge e a mãe cai numa dor humilde enternecida de mãe que perdeu o filho.
João Romão chegou à porta e ordenou à Marciana que despejasse o número 12.
O vendeiro estava transtornado desde o momento em que leu no “Jornal do Comércio”, que o vizinho estava barão!
À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, sonhou com um mundo diferente, habitado por seres superiores e luxuosos, que ele via descendo para a terra, chegando ao seu alcance.
Ao seu lado, Bertoleza “roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.”

“As seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta à entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora....[...] João Romão via tudo isso com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o mais acertado: - ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?...Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do vizinho?...Dinheiro não lhe faltava para isso...Sim, de acordo! Mas teria ânimo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?...sacrificar uma tetéia para o peito?...Teria ânimo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo famílias e cercando-se de amigos?...Teria ânimo de encher definas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco condescendente para com a própria?...E, caso resolvesse mudar de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria somente da sua vontade?...”

Esses questionamentos causaram uma dolorosa desconfiança de si mesmo e uma terrível convicção da sua impotência.
“– Teria gasto mais, é verdade!...Não estaria tão bem!...mas, ora adeus! Estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!...Seria um homem civilizado!....”

Passou o dia implicando com todos: com o fiscal da rua; com o gato da Machona; com as crianças de seu caminho; com o Libório; com os italianos e depois com Marciana que não havia despejado o quarto.

“– Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca! E tinha gestos inflexíveis de déspota.”

Marciana, desde que Florinda lhe fugira, só chorava e agora, assistia ao seu despejo resmungando um interminável monólogo desconexo.
Algumas mulheres foram prestar-lhe ajuda, mas Marciana não respondia.
A festa no sobrado do Miranda continuava ao som de músicas e risos. Às vezes, Henrique saía à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava nesse dia com a mãe, em casa de Léonie.
João Romão brigou com os caixeiros, com Bertoleza e depois foi maldizer o Jerônimo:

“- O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo! Perdia noites no samba! Não largava os rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela!”

Na venda, João Romão recebe através de um caixeiro, um convite do Miranda convidando-o a tomar uma xícara de chá, no sobrado, à noite.
De inicio ficou lisonjeado com o convite, mas depois achou que se tratava de uma provocação.
Alguns negros por compaixão haviam arrastado Marciana para dentro da venda e Romão ao ver entrar um policial, todo molhado pela chuva e pedir uma dose de parati, apelou para ele, dizendo:

“– Camarada, esta mulher é gira não tem domicílio, e eu não hei de, quando fechar a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!”

Uma hora depois, Marciana foi carregada para a cadeia e seus pertences recolhidos ao depósito público por ordem do inspetor do quarteirão.
À noite, empolgados pela festa do Miranda, o samba começou mais cedo no cortiço. Rita Baiana dançava e “cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio.
E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano com línguas finíssimas de cobra.”
Jerônimo não pode conter-se, segredou a mulata que:

“– Meu bem! Se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!”

Firmo percebeu, mas conteve-se até quando Rita derreou-se toda sobre o português e soprou-lhe um segredo, requebrando os olhos.
Os instrumentos silenciam e os dois homens posicionam-se para uma briga. Piedade tentou arrastar seu homem dali, mas foi empurrada pelo marido que ameaçava o Firmo:

“- Deixa-me ver o que quer de mim este cabra! ...rosnou ele.
- Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu, Firmo.”      

A luta principiou. As mulheres querendo apartar, enquanto João Romão fechou a venda e o portão da estalagem, correndo para o lugar da briga.

“O terror arrancava gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distância, via, de braços cruzados, aqueles dois homens se baterem por causa dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. [...] Piedade berrava reclamando polícia e as janelas do Miranda acumulavam-se de gente...”
Jerônimo voltou de sua casa com um varapau minhoto (pedaço de madeira, comprido e torto, que serve de apoio e de arma, o adjetivo minhoto refere-se à região do Minho, em Portugal) e Firmo com o rosto banhado de sangue pegou uma navalha e desferiu um golpe em Jerônimo, rasgando-lhe o ventre, sendo acudido pela esposa e pela mulata.
A polícia chegou, mas é impedida de entrar no cortiço.

“Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. [...] A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à caça de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.”
Até que o portão lascou e “os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros...”
Principiou então o salseiro grosso: polícia versus moradores do cortiço, quando Nenen gritou que havia fogo no número 12!
“A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho! Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam...[...] Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé-d´água desabou cerrado.”

                                                           XI
“A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço. Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as consequências foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia.”
Ninguém foi preso e graças às chuvas, o incêndio foi acalmado.
Logo cedo, João Romão furioso avaliou o seu prejuízo e concluiu que, “para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros.”

João Romão foi chamado à subdelegacia na secretaria da polícia e muitos moradores ou por camaradagem ou curiosidade o acompanham como numa verdadeira romaria.
O interrogatório, embora, fosse dirigido a João Romão, todos participaram incriminando a política por ter invadido o local, onde apenas estavam se divertindo. Dentro do cortiço, ninguém denunciava ninguém. Como pode ser confirmado, quando o médico que atendeu Jerônimo perguntou-lhe o que havia acontecido; e, a sua resposta foi: “- Estavam a brincar e sucedera aquilo!”
Rita cuidou de Jerônimo o tempo todo.

“Agora toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele Hércules tranquilo que mataria o Firmo com uma punhalada, mas que, na sua boa fé, se deixara navalhar pelo facínora. [...] E ele, tomava-lhe as mãos, e cingia-lhes a cintura, resignado e comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.”

No dia seguinte, Jerônimo foi encaminhado ao hospital, acompanhado pelas duas mulheres.
De manhã, Pombinha acordou indisposta. A mãe atribuiu a culpa por ela ter tomado muito gelado na casa de Léonie. Realmente, a ida à casa de Léonie jamais apagaria de sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos e assentou-se ao seu lado, fazendo-lhe muitas perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo de olhos fechados. Às duas da tarde, foi servido um lanche e champanha. Léonie demonstrava por Pombinha “extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa”; enquanto que Dona Isabel, que não estava habituada a beber, foi descansar.
Léonie dirige-se à Pombinha e diz:

“– Vem cá, minha flor!...disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!...Estou louca por ti!. [...] E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.”

Léonie levou Pombinha para o quarto e começou tocar em seu corpo e a despi-la. Pombinha “com vontade de afastar-se, mas sem ânimo de protestar, por acanhamento”, tentava reatar uma conversa, enquanto Léonie desabotoava-lhe o vestido e dizia;

“– Que tolice a tua...!Não vês que sou mulher, tolinha?...De que tens medo?...Olha! Vou dar exemplo!”

A menina negou despir-se e a cocote num movimento rápido desfez-se da roupa e investiu na menina. Pombinha cruzou os braços sobre o seio e “apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.”
Pombinha pedia para ela parar, mas Léonie pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu; “o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o roçar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos. Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos (pinotes) de égua, bufando e relinchando.
E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado, exânime, inerte, os membros atirados num abandono de bêbedo, soltando de instante a instante um soluço estrangulado.”

Pombinha chorava e gritava que nunca mais voltaria a encontrá-la. A cocote animava-lhe, beijando-lhe, enleando-a pelas pernas e comprometendo-se a ser a sua escrava, e obedecer-lhe como um cachorrinho, contanto que aquela tirana não fosse assim zangada... Depois do jantar, Léonie dá um anel com um diamante para Pombinha que só aceitou por insistência de sua mãe.
Na manhã imediata, Pombinha seguia constrangida e resolveu dar um passeio por detrás do cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras. A menina sentia necessidade de estar só e ao mesmo tempo, sentia-se arrependida, “toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delícias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado”.
Deitou-se debaixo daquela sombra fresca, fechou as pálpebras e sonhou que em “redor ia tudo se fazendo de um cor de rosa...[...] até formar-se em torno dela uma floresta vermelha...E viu-se nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios....depois uma borboleta, sem parar nunca (...) medrosa de tocar com as suas antenas de brasa a pele delicada e pura da menina.”
Pombinha, assim, despertou e sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente.

                                                           XII
Pombinha correu desesperada para casa e ao encontrar sua mãe, “ergueu as saias do vestido e expôs à Dona Isabel as suas fraldas ensanguentadas.”
A mãe agradeceu a Jesus Cristo e abraçou-se às pernas da filha e, beijou-lhe a barriga e parecia querer beijar “aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.”
E, saiu pelo pátio comunicando a notícia. Todos vieram parabenizá-las e davam conselhos:

“Que não apanhasse umidade! Que não bebesse coisas frias! Que se agasalhasse o melhor possível e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama!”

D. Isabel mandou chamar o João da Costa e fez um jantar para comemorar. Mas, desde o dia da navalhada, a estalagem estava triste: não havia mais cantorias; Rita estava aborrecida desde que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo foi proibido de entrar no cortiço; Piedade depois da primeira visita ao hospital certificou-se de que havia perdido o seu homem para a mulata e Bruno sentia saudades de Leocádia.
Mesmo diante de tanta tristeza, Pombinha e João da Costa marcaram o dia do casamento...
Bruno procurou Pombinha e pediu que ela escrevesse uma carta à Leocádia, afinal:

“Coitada! É mais doida do que ruim!” Pois se a gente até dos brutos tem penas!” E finalizou a carta “...se ela quiser tornar pra minha companhia...que pode vir...Eu esqueço tudo!”

Pombinha ao ver Bruno chorar sentiu-se estranha, porque só depois que “ela formou-se mulher”, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. [...] ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens...Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo...[...] E viu Firmo e o Jerônimo atassalharem-se, como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu o Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel...; e viu Domingos, que fora da venda...perdendo o seu emprego e as economias ajuntadas com sacrifício, só para ter um instante de luxúria entre as pernas de uma desgraçadinha irresponsável e tola; e tornou a ver o Bruno a soluçar pela mulher, e outros....” E, pensou no Costa que era como os outros submisso, passivo e resignado. Pombinha sentia repugnância em dar-se ao noivo e, se não fora a mãe, terminaria o noivado. Mas, chegou o dia do casamento...

                                                           XIII
O cortiço crescia e agora, na mesma rua, germinava outro cortiço: o “Cabeça de Gato”. Figurava como proprietário um português que também tinha uma venda, mas o verdadeiro proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações. Romão temia um concorrente, entregou-o aos fiscais e colocou-o seus moradores contra os do outro. Em pouco tempo, os dois cortiços já eram inimigos. Começava ali uma rivalidade que não permitia que o habitante de um cortiço migrasse para o outro; o peixeiro que falou mal dos “Carapicus” no “Cabeça de Gato” acabou sendo encontrado morto. 
“Os habitantes do “Cabeço de Gato” (bandeira amarela) tomaram por alcunha o título do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por “Carapicus” (bandeira vermelha). Firmo logo, instalou-se no “Cabeça de Gato” e ganhou prestígio e simpatias pelas suas façanhas e tornou-se chefe de malta. Seus encontros com Rita passaram a ser furtivos.
Romão desde que o Miranda conseguira o baronato transformou-se: fez roupas novas, frequentou a barbearia, associou-se a um clube de dança, começou a usar relógio, reformou a sua casa, trocou os móveis, instalou chuveiro, começou a comer decentemente, passou a beber vinho, passeava no Passeio Público, ia ao teatro, assinou o “Jornal do Comércio”, lia romances franceses traduzidos, admitiu mais três caixeiro, passou a frequentar a Rua Direita e “principiava a meter-se em altas especulações, aceitava ações de companhias de títulos ingleses e só emprestava dinheiro com garantias de boas hipotecas.”
Miranda vendo essa transformação tornou-se mais amável com Romão. Passou a cumprimentá-lo e chegou a convidá-lo para o aniversário de D. Estela, mas Romão não compareceu.
Bertoleza, por sua vez, continuou a mesma: suja, atrapalhada de serviço, cada vez mais escrava e rasteira, não participava das novas regalias do companheiro e caiu em imensa depressão.
Botelho, por sua vez, aproximou-se de Romão e um dia insinuou:

“- Aquela pequena é que lhe estava a calhar, seu João!...
- Ali, tudo aquilo é sólido!...Prédios e ações do banco!
 - Se você souber levá-lo, apanha-lhe a filha...”

Romão tinha dúvidas se Zulmira o aceitaria, mas Botelho o tranquilizava afirmando que a “menina foi criada a obedecer aos pais, sabe lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a família, que de dentro empurre o negócio e verá se consegue ou não!”
Botelho pediu 20 contos de réis para interceder nessa união e Romão oferecia dez.

“– Caso o meu nobre amigo se decida pelos 20, receberá do Barão um chamado para lá ir jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e encontrará o terreno preparado.”

Botelho não faltou com a palavra. Dias depois, Romão preparava-se para ir à casa de Miranda.
Zulmira ostentava seus 17 anos de idade e não parecia tão anêmica e deslavada.
Romão tentou portar-se como um cavalheiro, porém só quando ganhou as ruas, sentiu-se totalmente livre. Já em sua casa ao deitar-se ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e bodum (cheiro fétido) de peixe e, ver o negrume de suas pernas gordas e lustrosas, lembrou-se do estorvo que “o diabo daquela negra seria para o seu casamento”.

“Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se veria livre daquele trambolho?...”- E se ela morresse?...”

                                                           XIV
Passaram três meses. Firmo continuava a encontrar-se com a Rita Baiana, mas a mulata estava cada vez mais fria e a discussões eram contínuas entre o casal. Em um domingo, Rita não apareceu e Firmo enfurecido foi vigiar o São Romão. Sem novidades, decidiu entrar no botequim do Garnisé. Um mulatinho do “Cabeça de Gato” sentou-se ao seu lado e comentou que o Jerônimo havia saído do hospital.
Jerônimo ainda debilitado deixou o hospital, retornou a sua casa no cortiço e disse:

“– O que me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o bom como o faz a Rita...”

Piedade prontamente foi chamar a Rita.
Jerônimo confessou à mulata que:

“- Não digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas coisas que desejava...”

Rita contou-lhe que despachou Firmo, que não tem e não quer mais nenhum homem.
Jerônimo aproximou-se de Rita, apalpou-lhe a cintura de Rita, mas foram interrompidos com a chegada de Piedade, anunciando que o Zé Carlos e o Pataca queriam falar-lhe.
Os três foram conversar num lugar mais discreto e Jerônimo foi informado que Firmo vivia bêbedo no bar do Garnisé e que estava na hora de “liquidar a coisa hoje mesmo!”

“- Ainda estou muito fraco...observou lastimoso o convalescente.”
“- Mas o teu pau está forte! E além disso cá estamos nós dois. Tu podes até ficar em casa, se quiseres...”

Jerônimo decidiu “fazer o serviço” naquela mesma noite e pagaria 40 pra cada um e depois comemorariam com vinhos.
Ao cair da noite Jerônimo encontrou-se com seus dois amigos. Os planos eram: Pataca entraria no Bar do Garnisé, provocaria uma discussão com Firmo e chamaria o Firmo para resolverem a confusão na rua. Beberam e saíram para o serviço.

                                                           XV
Pataca entrou no Bar do Garnisé afetando grande bebedeira. Lá, encontrou Florinda acompanhada por uma velha quase cega e um homem inteiramente calvo (Sr. Bento), que sofria de asma. Ela contou-lhe que depois de fugir da estalagem, ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em construção. E que no dia seguinte oferecendo-se como criada ou de ama-seca, encontrou um velho solteiro e rico que a tomou ao seu serviço e meteu-se com ela. Até o dia em que brigaram, e, “como o vendeiro da esquina estava sempre a chamá-la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho.” Mas, “o tratante, a pretexto de que desconfiava dela com Bento marceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste.“ “(...) O Bento tomara-a então à sua conta, graças a Deus, por enquanto não tinha razões de queixa.”
Florinda acrescentou que sua mãe, a Marciana estava internada num hospício.
Pataca localiza Firmo no bar e fingindo estar bêbedo, convidou o “amigo” para beberem mais e tentou convencê-lo a entregar o canivete a ele. Depois de muita “conversa fiada”, Firmo comentou que estava sofrendo porque a Rita não havia aparecido naquele dia. Pataca aproveitou-se da situação e contou que o Jerônimo voltou à estalagem e instigou Firmo a procurá-lo. Em seguida, disse que viu a Rita na Praia da Saudade acompanhada...
Firmo decidiu procurá-la e Pataca acompanhou-o “amigavelmente”. Chegando ao local, Pataca reconheceu os dois comparsas, desarmou o Firmo e covardemente os três deram-lhe várias pauladas até que “tomados de uma irresistível vertigem de pisar bem a cacete aquela trouxa de carne mole e ensanguentada, que grunhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, à toa, para os lados da cidade.”          
Chovia forte naquela noite. Jerônimo pagou aos comparsas o combinado e foram beber para relaxarem e comemorarem.
Jerônimo ao chegar estalagem, dirigiu-se a sua casa e pela fechadura viu que a luz estava acesa.
Piedade esperava-o aflita e “pensou sentir, vindo lá de dentro, o bodum azedo que ela punha de si, fez uma careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata...”
Rita estava preocupada por não ter ido encontrar-se com Firmo justamente no dia, que Jerônimo voltou à estalagem. Tinha medo e receio de uma nova briga.

“Amara-o a princípio por afinidade de temperamento, pela irresistível conexão do instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com ele por hábito, por uma espécie de vício que amaldiçoamos sem poder largá-lo; mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu o europeu macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes. [...] Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional e empírico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o trágico incidente da luta, em que o português fora vítima. Jerônimo aureolou-se aos olhos dela com uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que ama; cresceu com aquela navalhada; iluminou-se com o seu próprio sangue derramado, e, depois, a ausência no hospital veio a completar a cristalização do seu prestígio, como se o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atrás de si a saudade dos que o choravam.”
E, Jerônimo amou-a logo que a viu, “porque sentiu nela o resumo de todos os quentes mistérios que o enlearam voluptuosamente nestas terras da luxúria...”
Rita escutou baterem à porta e ficou desesperada acreditando ser o Firmo. Ao abrir a porta tremeu ao ver que se tratava de Jerônimo sujo de sangue. Jerônimo contou que foi cuidar da vida deles e entregou-lhe a navalha de Firmo. Revelou que matou o Firmo e que estava disposto a fugir com ela. Quanto à Piedade, ele deixaria as suas economias e continuaria pagando o colégio da filha.
“– O que não falta é p’r’onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim uns quinhentos mil réis, para as primeiras despesas. Posso ficar cá até às cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter comigo.
– Sim, sim, meu cativeiro! Respondeu a baiana, falando-lhe na boca; eu quero ir contigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração!”

[...]
“Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e peludo colo de cavouqueiro os dois globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno.”

                                                           XVI
Piedade ainda esperava por Jerônimo e sem ter notícias, temia que algo de ruim tinha-lhe acontecido. Quando amanheceu, Piedade saiu desesperada à procura de notícias de seu marido.  Os curiosos perguntavam todos os detalhes, numa boa disposição para fazer daquilo o escândalo do dia.
Piedade chorava e repetia: “– Forte desgraça a minha!”
O cortiço já estava em sua movimentação costumeira e Piedade, “assentada à soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em que saíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo...”
A esposa abandonada pôs-se a caminhar agitada, falando sozinha e amaldiçoando aquele sol devasso que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de bode.

“Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; [...] lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo; seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que à tarde levanta para o céu de opala o seu olhar humilde, compungido e bíblico.”

Ao passar defronte do número 9 ouviu a Rita cantando. O cortiço já estava assanhado com a notícia da morte do Firmo, os “Cabeça de Gato” incriminavam os carapicus e juravam vingança.
Piedade voltou enfurecida após saber que o marido fora visto na companhia do Zé Carlos e o Pataca bebendo e andando na Praia da Saudades. A notícia, de certa forma, aliviou-a e voltou correndo a casa disposta a brigar com Jerônimo, mas surpreendeu-se a encontrar a porta trancada. Quando tomou ciência do assassinato de Firmo outro pensamento veio-lhe a mente:

“– Se ele matou o Firmo, dormiu na estalagem e não veio ter comigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!”

Piedade ao ver Rita “pegaram-se logo a unhas e dentes. [...] Dois partidos todavia se formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e quase todos os portugueses pela outra...(...) E as palavras “galego” e “cabra” cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas.”

[...] “De repente, uns quarenta e tantos homens de pulso invadiram a estalagem. O pátio estava quase cheio; ninguém mais se entendia; todos davam e todos apanhavam. [...] Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. Mas, no melhor da luta, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do “Cabeça de Gato”. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.”
 
                                                   XVII
Os moradores da estalagem pararam de brigar entre si e armaram-se para enfrentar um novo inimigo. Agora não eram mais portugueses versus brasileiros; mas, sim, um partido que ia ser atacado pelo partido contrário. Porfírio vinha na frente e os capoeiras distribuíam golpes para todos os lados, quando avisaram que um incêndio no número 88 estava eclodindo.
“Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo ensanguentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva. A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder...(...) A luta ficava para outra ocasião.”
Os moradores correram para tentar salvar seus pertences.  A bruxa surgiu à janela da sua casa rindo, quando se viu o desabamento da casa incendiada, sepultando a louca entre as madeiras em brasa. Polícia, bombeiros e uma multidão tentavam acalmar as labaredas.

                                               XVIII
Romão ao ver o velho Libório correndo ao seu esconderijo, seguiu-o e vendo o coitado tirar do seu colchão algumas garrafas tentou ajudá-lo. Libório agarrado as garrafas e vomitando sangue mordia as mãos do vendeiro. Romão consegue arrancar as garrafas do velho e foge dali levando as garrafas cheias de dinheiro e, deixando Libório “sem conseguir por-se de pé, rastreava na pista dele, rosnando uns vagidos de morte, os olhos turvos, todo ele roxo, os dedos enriçados como as unhas de abutre ferido.”
No dia seguinte, a polícia averiguou os destroços do incêndio e buscou vítimas. Rita desaparecera da estalagem no momento da confusão; Piedade estava de cama com uma febre de quarenta graus; uma filhinha da Augusta, a Carne-Mole morrera esmagada; das Dores, uma cabeça partida; a Machona Leandra, uma orelha rachada e um pé torcido; Bruno fora anavalhado na coxa; um italiano perdera os dentes da frente; dois trabalhadores da pedreira estavam feridos gravemente e todos se queixavam da má sorte. Bruno vai para o hospital da Ordem e Leocádia vai visitá-lo.
Sr. Miranda apareceu para dar os pêsames, mas, ao mesmo tempo felicitou Romão de ter assegurado a estalagem. O vendeiro após a primeira tentativa de incêndio tratou de segurar todas as suas propriedades e agora, em vez de o fogo trazer-lhe prejuízo, até lhe dava lucros. Enquanto que os infelizes moradores tentavam salvar seus cacarecos, Miranda comentava com maldade que eles não tinham nada para perder.
Romão expôs os seus planos de reconstrução da estalagem. Miranda ouviu com atenção e concluiu que “pena é estar metido com a peste daquela crioula! Nem sei como um homem tão esperto caiu em semelhante asneira!”
Só depois de ter certeza de que Bertoleza dormia, Romão foi contar o dinheiro das garrafas roubadas de Libório. Grande quantidade das cédulas era prescrita. Depois, conformou-se. Afinal, fez um ato de justiça impedindo que todo aquele dinheiro apodrecesse.

“Sim! Se havia nisso ladroeira, queixassem-se do governo! O governo é que era o ladrão!”

                                                           XIX
Nos dias seguintes, a reforma do cortiço avançou e aqueles que ficaram sem moradia foram ajeitando-se desordenadamente pelos cantos à espera dos novos cômodos, mas ninguém se mudou para o “Cabeça de Gato”.
Bruno estava hospitalizado na Ordem, Leocádia foi visitá-lo e lá, reataram a sua relação. Piedade após o abandono do marido envelhecera, mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
A reforma do cortiço também alcançou a venda, onde levantou um sobrado mais alto e mais vistoso que do Miranda.
Agora, todos os domingos, Romão jantava na casa do Miranda, iam ao teatro e andava de braços dados com a Zulmira, dava-lhe presentes, procurando sempre galanteá-la.
Bertoleza percebeu tudo calada, submissa, sem ânimo de reclamar os seus direitos.

“Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a mísera desejava, era somente confiança no amparo da sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. [...] Adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que morrem de ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar ao seu ídolo a vergonha do seu amor.”

Bertoleza deixou de ser a amante do vendeiro e tornou-se somente sua escrava. Um dia, ouvindo Botelho incentivar Romão a pedir “a mão” de Zulmira, Bertoleza não se conteve e chorou muito.
Por outro lado, Jerônimo morava com Rita numa estalagem da Cidade Nova e trabalhava na pedreira de São Diogo, onde trabalhava dantes. As despesas eram altas, tiveram que comprar todos os arranjos da casa e não pouparam nos apetrechos. Até um banheiro próprio construíram, porque o da estalagem repugnou à baiana.
Nos primeiros dias, os dois viveram em plena lua de mel. Jerônimo se transformou totalmente: a guitarra substituiu-a pelo violão e a baiana deu-lhe uma rede e um cachimbo, apresentou-lhe as cantigas do norte, as comidas típicas da Bahia, o temperado com azeite de dendê, muquecas, cachaça...

“O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém.”

Piedade também se transformou e passou a beber todos os dias para enganar os pesares.

“Fez-se madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bulir nas economias que Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela pobrezinha orfanada antes da morte dos pais.”

Os seus únicos momentos de contentamento eram com a visita de sua filha, que o pessoal da estalagem passou chamá-la por “Senhorinha”.
Um dia a filha entregou à mãe um aviso de cobrança de seis meses da pensão do colégio. Piedade sabia o endereço de Jerônimo e foi cobrá-lo.
Jerônimo surgiu com “um ar triste de vicioso envergonhado que não tem ânimo de deixar o vício. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda a energia com que chegara e comoveu-se tanto, que as lágrimas lhe saltaram dos olhos às primeiras palavras que lhe dirigiu. [...] Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quase a pedir-lhe perdão...
– Minha pobre velha...balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.”

Esse simples gesto trouxe novamente esperanças à Piedade que sentiu desejos de se jogar nos braços de Jerônimo. Contava ouvir desaforos de Jerônimo; mas encontrá-lo desgostoso, “sua alma postou-se reconhecida [...] Jerônimo deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro e depois à cintura da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explosão de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.          
– Consola-te! Que queres tu?...São desgraças!...disse o cavouqueiro afinal, limpando os olhos. Foi como se eu tivesse te morrido...mas podes ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!...Volta para casa; eu irei pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!”

Jerônimo não conseguiu cumprir a promessa e isso, deixou-o apreensivo. O problema era que Rita vivia de luxos e ele receou contrariá-la e perdê-la.
A segunda aparição de Piedade foi acompanhava pela filha e surpreendeu-o embriagado numa roda de amigos.
Jerônimo chamou à baiana e fez que Piedade e a amante abraçassem-se, perdoassem-se e insistiu para que elas jantassem juntas. Durante o jantar, Piedade reclamou de sua vida e chorou. Jerônimo deu um soco na mesa e ordenou que ela pagasse a conta do colégio com o dinheiro que ele havia deixado. E, acrescentou que a filha já não precisava de colégio e que viesse morar com ele.

“– Ó mulher! Você não está separada dela a semana inteira?...Pois a pequena, em vez de ficar no colégio, fica aqui, e aos domingos irá vê-la. Ora aí tem!
- Eu quero antes ficar com minha mãe!...balbuciou a menina, abraçando-se a Piedade.
- Ah! Também tu, ingrata, já me fazes guerra?!Pois vão com todos os diabos! E não me tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com que arreliar-me!”

Rita não se envolveu na contenda, esperou as duas saírem, aproximou-se de seu homem e beijou-lhe. Enquanto isso, no portão da estalagem, Piedade com sua filha tentavam controlar suas lágrimas.

                                                           XX
Já em sua casa, Piedade bebeu e saiu para o pátio.

“Mas o cortiço já não era o mesmo...O pátio, como João Romão havia prometido, estreitara-se com as edificações novas; agora parecia uma rua...Fizeram-se seis latrinas, seis torneiras de água e três banheiros. Desapareceram as hortas, os jardins...e os imensos depósitos de garrafas vazias. [...] De cento e tantos, a numeração dos cômodos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e goteiras encarnadas.”
[...]
“João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra...e na tabuleta nova [...] lia-se em letras caprichosas: AVENIDA SÃO ROMÃO.”

O Cabeça de Gato estava totalmente vencido e desmoralizado perdendo seus moradores para os carapicus.
Num domingo, durante a reunião de um grupo com viola, Piedade apareceu e depois de beber, começou a tomar interesse no pagode. Romão ao chegar ao cortiço encontrou-a a “dançar ao som de palmas, gritos e risadas, no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e com o pé embaraçavam-lhe as pernas, para a ver cair e rebolar-se no chão.”
Romão pôs ordem no ambiente e recebeu protestos principalmente de Piedade e de Pataca. O casal se recolheu a casa de Piedade e depois de comerem, beberem, Piedade explicou a causa do sucedido naquela tarde. Pataca, então, tentou seduzi-la.
Na cozinha, com a desculpa de fazer um café, Pataca agarrou e arrastou Piedade ao chão, até conseguir saciar-se nela. No momento em que Pataca retornou à sala deu de encontro com a Senhorinha, que tinha acordado e no escuro assistiu a tudo.
Pataca retornou imediatamente à cozinha e encontrou Piedade no chão adormecida. Ao tentar levantá-la, ela vomitou e foi preciso arrastá-la para a cama. A menina chorou ao ver o estado da mãe e Pataca saiu furioso por não ter tomado café.

                                                           XXI
João Romão passeava em seu novo quarto, pensando em um meio de livrar-se de Bertoleza que agora dormia embaixo de um vão de escada, aos fundos do armazém, perto da latrina. Romão sentia-se pressionado por Miranda e D. Estela que queriam marcar a data de casamento.

“Como poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso? E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranquilo obstáculo que lá estava embaixo, a dormir...”

No entanto, a sua união com Zulmira significava fazer-se membro de uma família tradicionalmente orgulhosa e aumentava os seus bens com o dote da noiva, além de herdar mais tarde o que o Miranda possuía, realizando-se deste modo, um velho sonho que o vendeiro afagou desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho: tornar-se “um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil”, conquistar o título de Visconde e mais tarde, de Conde! Depois, iria à Europa, “pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!”

“Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo o que havia de mau na vida dele! Seria um crime conservá-la a seu lado! Ela era o torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas à portuguesa; era o sono roncado num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a sua cúmplice e era todo seu mal – devia, pois, extinguir-se!”

Romão, então pensou matar “aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!” Mas, ao se aproximar da crioula, ela despertou e perguntou o que estava acontecendo...

“Se eu a tivesse despachado logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém desconfiaria da história...Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois da separação das camas, e principalmente depois que corresse a notícia do casamento, não faltaria decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse morta de repente!”

De manhã, o cortiço foi surpreendido por mais uma desgraça. Agostinho despencou da pedreira quando brincava com mais dois moleques e faleceu.
Botelho persiste em convencer Romão despachar Bertoleza, afinal “o dente que já não presta arranca-se fora!”
Bertoleza apareceu na sala e “a indignação tirava-lhe faíscas dos olhos e os lábios tremiam-lhe de raiva:

“– Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira à toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!”

Romão confirmou que pretendia casar-se com Zulmira, mas que não a deixaria desamparada e já estava negociando uma quitanda para ela. Bertoleza responde:

“– Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor me deu força e saúde! [...] Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! Quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! Quero o meu regalo, como você quer o seu! [...] quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo aguentar a sua casa com o meu trabalho. Então a negra servia para tudo; agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! [...] quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato.”

Romão ficou raivoso e saiu. Botelho tentou acalmá-lo e perguntou-lhe se Bertoleza era escrava quando a conheceu. Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro que estava planejando interná-la no Hospício de Pedro II. Romão resolveu entregá-la ao seu antigo dono, Freitas de Melo e restituí-la legalmente à escravidão. Era só denunciá-la que o seu senhor viria buscá-la com a polícia. E contratou Botelho para efetuar o serviço mediante o pagamento de duzentos mil réis.

                                                           XXII
Desde a discussão com Miranda, Bertoleza só trocava algumas palavras necessárias com o vendeiro; só comia comidas que ela mesma preparava e só dormia depois de trancar-se a chave.
Os negócios de Romão continuavam prosperando: “fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se lá para vender a retalho.” A sua casa tinha agora um pessoal complicado de caixeiros, guarda-livros, despachante; do seu escritório saíam correspondências em várias línguas; faziam-se contratos comerciais, transações em que se arriscavam fortunas; negociações de empresas e privilégios obtidos do governo; realizavam-se vendas e compras de papéis; concluíam-se empréstimos de juros fortes sobre hipotecas de grande valor e como a casa comercial de Romão a sua avenida também prosperava. Muitos moradores já não conseguiam pagar o aluguel da casinha e acabavam mudando-se para o “Cabeça de Gato” e as casinhas eram ocupadas agora por pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de secretaria.   
Florinda agora amigada com um despachante de estrada de ferro voltou para o São Romão e lamentava-se pela morte de sua mãe, a velha Marciana, no hospício. Não mais se admitiam pagode e provocações ao relento. A Machona, depois da morte de Agostinho estava mais calma e havia um pretendente à mão de Nenen; Alexandre fora promovido a sargento e Léonie continuava a visitar o cortiço, agora acompanhada por Pombinha, que se atirou ao mundo e vivia agora em companhia da madrinha.
A filha de D. Isabel já nos seus primeiros anos de casada não suportou a mesmice de seu marido; todavia, a princípio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a falta de espírito, até que “faltou-lhe o equilíbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira.” Costa, um dia, seguiu sua esposa e pegou-a em flagrante, não mais com o poeta libertino, e, sim, com um artista dramático. Rompeu com a esposa adúltera, entregou-a a mãe e mudou-se para São Paulo.
D. Isabel tentou interceder pelo casal, escreveu ao genro pedindo para que ele perdoasse Pombinha, mas não obteve resposta.
Passados alguns meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe e foi morar num hotel junto de Léonie. A mãe jurou que a filha estava morta para ela, mas sem forças para se manter, aceitou de cabeça baixa o dinheiro da prostituição, que Pombinha mandava.

“Depois, como neste mundo uma criatura a tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas não aparecia nunca na sala quando havia gente de fora, escondia-se; e, se algum dos frequentadores de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com vergonha de si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O que mais a desgostava, e o que ela não podia tolerar sem apertos de coração, era ver a pequena endemoninhar-se com champanha depois do jantar e por-se a dizer tolices e a estender-se ali mesmo no colo dos homens.”
D. Isabel deprimida, desgostosa e enferma foi internada num hospital e lá, faleceu.
Pombinha era mestra na arte do prazer e “seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si.”

Ela, Léonie e a Juju continuavam visitando o São Romão e, lá, continuava sendo vista como a querida mestra.
Pombinha tinha uma simpatia especial pela filha de Piedade, idêntica à que noutro tempo fora inspiração à Léonie.

“A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.”

E a casa de Piedade sobrevivia graças às esmolas de Pombinha.
“(...) vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, dessa embriaguez sombria e mórbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era o mais imundo e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez, aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz.”
Até que um dia, despejaram-lhe seus cacarecos na rua e ela e a filha se mudaram para o Cabeça de Gato.
                                                           XXIII
Romão, ex-taverneiro e futuro visconde, espera pela família do Miranda à porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, quando Botelho chegou trazendo a notícia de que encontrara o antigo dono de Bertoleza e que era importante a presença dele no momento da entrega da escrava.
Romão queria evitar esse constrangimento, mas Botelho insistiu afirmando:

“– Que diabo lhe custa isto?...Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a entrega – pronto! Fica livre dela para sempre, e daqui a dias estoura o champanha do casório! Hein, não lhe parece?
– Ela há de choramingar, fazer lamúrias e coisas, mas você põe-se duro e deixe-a seguir lá o seu destino!...Bolas! não foi você que a fez negra!...[...] faça como coisa que não tem nada com isso, compreende?
– Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguém?!...Você não sabe lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora aparece o dono, reclama-a e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe não pertence! Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe dará qualquer coisa.”

Durante o caminho, Botelho e Romão cruzaram uma carruagem, que levava Pombinha e Henriquinho, agora no seu quarto ano de medicina e que vivia à solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico.
Depois do jantar, um empregado veio avisar que um senhor acompanhado de duas praças desejava falar ao dono da casa.
Romão recebeu os visitantes e leu a folha de papel que lhe fora entregue. Dissimulando estar chocado, disse que pensava que Bertoleza fosse livre.

“Atravessaram o armazém [...] chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras, no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro. Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
[...] Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito. Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.”

X – CONSIDERAÇÔES FINAIS:

1. O ROMANCE SOCIAL:

Desistindo de montar um enredo em função de pessoas, Aluísio atinou com a fórmula que se ajustava ao seu talento: ateve-se à sequência de descrições muito precisas, onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem, no conjunto, do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance naturalista.
Todas as existências se entrelaçam e repercutem umas nas outras. “O Cortiço” é o núcleo gerador de tudo e foi feito à imagem de seu proprietário, cresce, se desenvolve e se transforma com João Romão.

2. A CRÍTICA DO CAPITALISMO SELVAGEM:

O tema é a ambição e a exploração do homem pelo próprio homem. De um lado João Romão que aspira à riqueza e Miranda, já rico, que aspira à nobreza. Do outro, a gentalha, caracterizada como um conjunto de animais, movidos pelo instinto e pela fome.
No espaço de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das personagens caindo no código antirromântico de despersonalização; para o narrador, no Cortiço, já não se distinguem homens de animais, objetos ou vegetais.

3. O DETERMINISMO:

"O Cortiço" é o grande representante do naturalismo no Brasil. Essa obra caracteriza-se principalmente pelo aspecto experimental nela desenvolvido, analisando o homem como um simples produto da hereditariedade e do meio em que vive.
É a despeito das descrições minuciosas do ambiente e do cuidadoso estudo dos elementos biográficos a cerca dos indivíduos que Aluisio constrói uma narrativa extremamente relacionada aos fatores externos. Não há interesse em descrever o aspecto psicológico das personagens, o que predomina é a intenção de mostrar, de maneira fria e precisa, como o homem age sobre o meio e vice-versa.
Para Sodré (1995), “O Cortiço pinta o cenário urbano do final do século XIX e nele está perfeitamente fotografada a sociedade desse tempo, com as suas mazelas e as suas chagas. O autor desse livro não se propõe a solucionar os problemas da sociedade, mas sabe colocá-los em suas verdadeiras dimensões”.
Não é por acaso que toda a trama do romance relaciona-se com o cortiço e sua gente. Por tratar-se de uma habitação coletiva, povoada por seres marginalizados, o autor pode facilmente explorar como se processa o comportamento dessa coletividade. Faz-se latente uma critica social, cujo papel é denunciar a podridão da sociedade, ganhando nesse sentido, também, um caráter documental, pois os fatos estão estreitamente voltados para a realidade.

Na obra é possível fazer a análise do pensamento de Taine: não há nenhuma expectativa de movimentação social dos moradores do cortiço, relegadas assim às determinações de maneira suposta já definidas étnicas (raça), social (meio) e historicamente (momento), como acreditavam os naturalistas, identificando em Bertoleza esse determinismo nos três aspectos: sendo que, no aspecto Raça, identificamos na personagem o fato de ser negra, e, além disso, escrava, sabendo que o romance é de uma época abolicionista, em que acontecia a abolição, no entanto, os escravos permaneciam em situação de vulnerabilidade social, passando a ser escravo fora da senzala, “- agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta ” enquanto esse trecho dá a idéia de libertação, já este “varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna (...) à noite passava-se para a porta da venda (...) fritava fígado e frigia sardinhas ...”, nos remete a outro tipo de escravidão.

Acerca do Meio percebe-se que o espaço do cortiço influencia de tal forma nos comportamentos dos que ali habita que mesmo os vindos de outro país, mudam seus hábitos e sua personalidade, tornando-se pessoas de hábitos inferiores, como é o caso do personagem Miranda, que ao morar no cortiço diminui consideravelmente seu status social e seu poder financeiro, sendo isso influencia do meio, isto posto, também Bertoleza sofre essa influencia, morando no cortiço não poderia fugir da sua condição.

Por fim, na análise do Momento Histórico, a personagem é influenciada de forma ainda mais brusca, já que, se despedindo do regime escravocrata, a sociedade do século XIX é também burguesa, como já citamos, o negro escravo, submisso, cheio de características execráveis, é retratada na personagem.

O mesmo fato não se repetiu em Jerônimo, também branco e português que se mudou para o cortiço e foi trabalhar na pedreira. Apesar de Jerônimo pertencer à plebe, a mudança operou-se nele ao contrário da realizada em João Romão. Ligado às tradições lusitanas, a família e muito trabalhador, a influência do meio agiu sobre o cavouqueiro de forma degradante.

“Jerônimo abrasileirou-se” após a mudança para o cortiço, mas o fator decisivo para essa transformação foi a sua paixão pela mulata Rita Baiana, que era muito dada a patuscadas. Esse processo ocorreu lentamente, porém foi definitivo como podemos constatar:
Mais uma vez o determinismo se impõe não só na figura do português, mas também no estereótipo da mulata brasileira. Rita como mulata é um tipo que referencia a sensualidade, característica atribuída á mulher negra desde o início da sociedade brasileira.

A trajetória da mestiça em nossa sociedade principia com o regime de escravidão, em que a negra realizava todo tipo de tarefas, assim como tinha por dever satisfazer os desejos sexuais de seus senhores que não podiam realizá-los com as esposas.
A negra cedeu lugar a mulata que se mostrava mais bela nas feições e ainda reunia os dotes exóticos da mestiça. Essa marca perpetuou-se por toda a história dessas mulheres que continuaram, e ainda hoje continuam a serem vistas como objeto de satisfação sexual masculina.
A propósito da mulata na obra de Aluísio, podemos notar esses mesmos aspectos pela forma como ele refere-se a Rita:

“Os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher”.

Toda a discrição da mulata segue a teoria naturalista, condicionando-a aos fatores de raça e ambiental. Esse tal determinismo que impõe ao indivíduo características e sobre o qual ele não exerce nenhuma defesa, poderia, então, ser encarado simplesmente como uma análise fria e imparcial da sociedade ou como uma forma disfarçada de preconceito.

4. O IMIGRANTE PORTUGUÊS:

Tematizando a problemática da migração, pode-se constatar nas obras de Aluísio Azevedo, um posicionamento epigramático, sobretudo, em “O Cortiço” (1890).  É atribuído ao imigrante português o centro de embate da obra. Assim, de um lado está João Romão, dono de um comércio de secos e molhados, que por meio de todas as ilegalidades possíveis, fez-se proprietário de um cortiço, em oposição ao patrício Miranda, que sendo dono de um sobrado, constituía-se a base da inveja que imperava nas vísceras de João Romão de modo a privar-se de todo conforto na quase insuportável escalada ao topo do status quo. “Travou-se então uma luta renhida e surda entre o português negociante de fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados” (Azevedo, 1993, p.27).
A partir de tal polaridade, são estabelecidos inúmeros elementos carnavalizadores no texto: o cortiço, que se arrastava por sobre os sonhos do proletariado que ali se instalava (sobretudo a mão de obra da população local que se contrapunha a dos imigrantes pobres que vinham em busca de melhores condições de vida), tornava-se o eixo contraposto ao sobrado, que ostentava as regalias do português rico, embora “escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos de virtude”. Enquanto João Romão lutava contra os próprios limites do corpo com uma carga de trabalho brutal, a fim de obter fortunas, Miranda vencia o orgulho próprio ao ter que relevar as traições da esposa, fonte da sua loja de fazenda por atacado. A figura do imigrante “forasteiro e aproveitador” configura-se na postura de ambos, embora em circunstâncias adversas.
“Feliz e esperto era João Romão!  Esse, sim, senhor! Para esse é que havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu! esse, sim, que era moço e podia ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe saísse outra Estela, era só mandá-la pra o diabo com um pontapé! Podia fazê-lo! Para esse é que era o Brasil.” (AZEVEDO, 1993, p.33)
Na obra, a personagem Jerônimo, passando por um processo de transculturação recebeu em igual proporção os malefícios de uma identificação, que sendo imposta aos nativos pelo europeu, ainda impera como referente característico dos brasileiros, como se “malandros” fossem dentro da liberdade de adequação, sem a sujeição aos paradigmas impostos pelos colonizadores.
“Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele (...) A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal... e volvia-se preguiçoso, vencido, às imposições do sol e do calor (...) E curioso é que quanto mais ele ia caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam...”.
A identidade nacional reconhecida na obra é constituída de elementos degradantes: Jerônimo arruinou-se, “abrasileirou-se para sempre” – vítima dos males advindos por ação dos seus patrícios, sim. A cultura brasileira foi construída, sobretudo por quem? Jerônimo é a síntese mimética da personalidade fabricada pela aculturação.

5.  SEXUALIDADE DA MULATA VERSUS O IMIGRANTE PORTUGUÊS:
No que diz respeito à problemática sexual, brotam do hibridismo étnico da terra os elementos utilizados por Aluísio Azevedo para destacar o papel da sexualidade instintiva, mormente no que tange ao papel da “mulata literária”. Demonstra, por meio dela, a animalidade sexual a que se submete a condição humana diante dos preceitos da corrente naturalista. Rita Baiana, por exemplo, “é o perfil mais acabado desse ‘elemento perigoso’ que habitou o mundo ficcional brasileiro dos oitocentos” (Jean Marcel Carvalho França).
Rita representa a visão da mulata predominante na época. Arrastando pelas curvas do corpo dançante o veneno da sedução, envolveu Jerônimo – amarrando-o à sua lasciva influência, cuja libidinosidade destitui-lhe todas as virtudes. Ela surge convertida no fator de corrosão do caráter autóctone do português, transculturando-o.
Rita, com o cheiro da terra impregnado à sua pele, submete o estrangeiro, colocando-o aos seus pés. Todavia, mulata, portanto híbrida, já levava em si os traços identitários que a tornavam embebida da torpe malandragem que constituía a máscara representativa do brasileiro.
“- Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo, vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!”  (op. cit., p.48)
Na análise desta segunda personagem, vale ressaltar seu estereótipo de mulher baiana, sensualidade e rebeldia, características presentes em toda obra sempre que se referi a esta personagem. Contrária ao retrato da mulher idealizada romântica, Rita é a mulher independente e rebelde, que diferente de Bertoleza, oprime e seduz os homens, desmoronando a idéia de modelo patriarcal da sociedade em que a mulher era apenas objeto, Rita Baiana criticando até mesmo a instituição casamento vai contra toda uma ordem estabelecida.
“- Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Pra quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!”
 Essa visão que o autor tem de Rita Baiana, segue a visão da sociedade da época.

6. A FUNÇÃO DA MULHER NO SISTEMA DE TRANSFORMAÇÃO:

Como vimos anteriormente a mulher participa do regime de trocas, ela dá e recebe. A posição da mulher na estética naturalista, no entanto, é bem diversa daquela na estética romântica. Descrita mais objetivamente, enraizada na realidade, ela surge sem as idealizações e falseamentos. Nessa narrativa de Azevedo, a mulher é descrita principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses físicos e materiais. São elas:

a) a mulher-objeto que é trocada como nas sociedades primitivas;
b) a mulher sujeito-objeto que aceita as regras do sistema dando tanto quanto recebe;
c) a mulher-sujeito que regula os regimes de troca capaz de impor condições.

A prostituição francesa, fator incomum à cultura nativa, transcorre nas linhas do livro, pela força sedutora de Léonie, tornando-se também um imperativo de exploração a meninas como a doce Pombinha e outras possíveis presas “chocadas” sob o corpo pesado do cortiço de João Romão. A prática da prostituição foi herança do colonizador – servir-se, sexualmente, das índias resolveria a difícil tarefa de colonizar, vencendo as adversidades climáticas, sem a presença da mulher branca.
Ambos os comportamentos são explicados pela influencia das idéias vigente na época, especialmente do “ambientalismo de Taine”, que acredita firmemente no determinismo acreditando que o meio, raça e momento histórico determinam o ser - humano tal teoria explicaria os comportamentos das personagens aqui estudadas, O cortiço, por se tratar de um lugar onde não há condições descentes de sobrevivência, determinaria o “ser” de Rita Baiana, Bertoleza, Pombinha e Léonie.

7. HOMOSSEXUALIDADE RETRARADA EM “O CORTIÇO”:

A homossexualidade feminina retratada em “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo (Pombinha e Léonie) visa identificar acerca das condições da mulher lésbica no naturalismo: é visto como doentio, anormal, patológico. Assim as personagens apresentam desvios. O naturalismo é material, é do corpo não humano. Retratando a realidade de forma objetiva, descrevendo grupos marginalizados. A exclusão do homossexual é bastante antiga, entretanto o naturalismo acrescenta elementos que mostram essa predileção em retratar mazelas e chagas da sociedade.
A mulher no naturalismo era tratada como objeto sexual, e tudo sobre os desvios na sexualidade estavam relacionados a fatores internos e externos. Portanto, Léonie seria definida como mulher pervertida, impura, aquela que tem que ser banida, pois é um "mal" que assola a sociedade e pode contaminar os que conviverem com ela. Pombinha é fraca, nervosa, doente, enfermiça, doente, loira, muito pálida, sua sensualidade associada a doses de inocência, pureza, boa família, asseada.
A personagem tem a figura da mãe, que a protege e a figura do pai, um homem que fracassa e comete suicídio. Talvez essa figura do pai seja substituída pelas carícias e mimos de sua madrinha Léonie, que perverteu Pombinha desviando-a para uma vida de prostituição, sexo e embriagues. Pombinha toma Léonie como espelho, modelo de vida a ser seguido.

“Arrancou-lhe até a última vestimenta e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empogar-lhe os lábios, o róseo do peito (...), deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal (...).”
“Espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por doida de luxuria, irracional, feroz, reluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando. E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas e esmagavava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros (...) devorou-a num abraço (...) ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos.“
A ruptura acontece quando Pombinha se separa do seu marido, após adultério. Atirou-se as coisas mundanas e foi morar com Léonie, mais sustentava a mãe com o dinheiro da prostituição, a qual se tornou perita e com sua sagacidade, conquistava todos os homens.
Pombinha tinha uma afilhada e a tratava com a mesma simpatia que fora tratada por Léonie. "A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher".

8. SÃO ROMÃO VERSUS CABEÇA-DE-GATO:

Na medida em que Romão vai evoluindo econômica e socialmente, “São Romão” sofre um processo de modificações também qualitativas até chegar à Av. São Romão. Alinha de ascensão do cortiço é a mesma de seu proprietário que, na verdade, funciona como uma metonímia de seu conjunto. Enquanto isso: o “Cabeça-de-Gato” à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiros de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão”.