Aluísio
Azevedo (A. Tancredo Gonçalves de A.), caricaturista, jornalista, romancista e
diplomata. Nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos
Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913. É o fundador da Cadeira n. 4 da
Academia Brasileira de Letras.
Era filho
do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de d. Emília Amália Pinto
de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia
casado, aos 17 anos, com um rico e ríspido comerciante português. O temperamento
brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de
amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois
passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi
considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da
infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro
e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela
pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais
tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o
Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se
na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se,
fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe,
Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses "bonecos" que
conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte
do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família.
Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance “Uma
lágrima de mulher”, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o
jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura,
enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança “O
mulato”, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense, não só pela
crua linguagem naturalista, mas, sobretudo, pelo assunto de que tratava: o
preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte
como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pode fazer o caminho de volta para o Rio
de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como
escritor.
Quase
todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou
a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para
garantir a sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de
Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das
casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português.
Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão
(1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção: romances,
contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo
e Emílio Rouède.
Em 1895
encerrou a carreira de romancista e ingressou na diplomacia. O primeiro posto
foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e
na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade
argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, que Aluísio adotou. Em
1910, foi nomeado cônsul de 1a classe, sendo removido para Assunção. Depois foi
para Buenos Aires, seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado
naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna
funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado
definitivamente.
II –
CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO DA ÉPOCA:
O início
do século XIX no Brasil é marcado, em 1808, pela chegada da família real
portuguesa, que fugia do conflito entre a França napoleônica e a Inglaterra. No
Brasil, ainda, apreciava-se a arte barroca-colonial.
A
transferência da corte portuguesa para o Brasil e a elevação da colônia a Reino
Unido e sede do governo metropolitano renovaram o país. Nessa cidade o soberano
português começou uma série de reformas administrativas, sócio-econômicas e
culturais, para adaptá-la às necessidades dos nobres que vieram com ele e sua
família. Assim, foram criadas as primeiras fábricas e fundadas instituições
como o Banco do Brasil, a Biblioteca Real, o Museu Real e a Imprensa Régia.
No século
XIX, após um crescimento contínuo da grande lavoura de exportação
(cana-de-açúcar), que se confundiu com a expansão do café pelas serras e vales
do interior da província do Rio de Janeiro, começaram a aparecer sinais
evidentes de que a agricultura brasileira vivia uma profunda crise. Esta crise
era atribuída, sobretudo, à falta de braços (pelo fim da escravidão) e de
capitais, além do atraso técnico e administrativo na condução das lavouras.
A maioria
dos grandes proprietários acreditava na exploração extensiva dos sistemas de
produção, através da expansão das fronteiras agrícolas, abandonando as lavouras
atuais quando estas não tivessem mais produtividade satisfatória e indo em
busca de novas áreas reiniciando, assim, o ciclo de exploração da fertilidade
dos solos. Esta era a cultura nômade de expropriação do solo brasileiro, na
qual pouco se pensava nas consequências negativas dos manejos agropecuários
empregados, especialmente no que diz respeito à destruição florestal.
. teorias
de nova interpretação da realidade: Positivismo, Determinismo, Socialismo
Científico e Evolucionismo;
· no
Brasil, campanha abolicionista a partir de 1850 que culmina com a Lei Áurea em
1888;
·
fundação do Partido Republicano nacional após a Guerra do Paraguai;
·
decadência da monarquia brasileira;
· fim da
mão-de-obra escrava e sua substituição por trabalho assalariado;
·
imigrantes europeus para a lavoura cafeeira;
·
economia mais voltada para o mercado externo, sem colonialismo.
III –
CARACTERÍSTICAS DO ROMANCE NATURALISTA:
O
naturalismo, corrente literária fundamentada em aspectos cientificistas,
reflete as mudanças ocorridas nos campos econômico, político-social e cultural
que explodiram em meados do século XIX.
O
escritor dessa tendência analisa o indivíduo a partir dos componentes
hereditários e das circunstâncias ambientais que determinam o seu
comportamento, ao contrário do romântico que anteriormente procurava idealizar
o homem e a natureza.
O foco do
naturalismo consiste em retratar a realidade de maneira objetiva, desnudando as
mazelas humanas e sociais. Daí o interesse em descrever grupos marginalizados,
valorizando-se a coletividade, cada vez mais em evidência devido às
transformações que se estabeleciam no cenário mundial. Podemos tomar como
exemplo a Revolução Industrial que impulsionava o capitalismo e fazia surgir os
grandes centros industriais, reunindo uma massa operária que inchava as cidades
e que não dispunha dos recursos necessários para viver dignamente.
IV -
ESPAÇO:
O uso do
espaço urbano pelas personagens de “O cortiço” permite configurar a obra de
Aluísio Azevedo como um romance de localização especificamente carioca. Nele,
são flagradas a cidade e a sociedade em estado de mutação, quando se adapta
para o ambiente urbano a dicotomia de casa grande e senzala, agora traduzida
pelos contrastes simbolizados pela oposição entre cortiço e sobrado. Assim, a
preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo, fornece um
painel da cidade, em momento de profunda transformação social, cultural,
humana. Graças à minuciosa pesquisa que empreendeu, Aluísio Azevedo transformou
seu romance em um documentário não só sobre a acumulação de capital como também
sobre a cidade do Rio de Janeiro, através da vida, trabalho, moradia e lazer de
seus habitantes, sejam eles pertencentes às camadas aristocráticas ou às
populares.
Pode-se
começar a proceder a uma análise sociológica de “O Cortiço” pelo exame dos
espaços físicos: o cortiço e o sobrado onde seu enredo se desenvolve, buscando
compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente, bem como as
relações sociais presentes na obra sob a ótica determinista de Aluísio Azevedo.
“Não
obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam se
logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em
alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os
empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos
da obrigação [...] Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem".
(Aluísio Azevedo. “O Cortiço”, cap. I, p.21).
“Justamente
por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda,
separada desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco
esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o
terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou o um tal Miranda,
negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas
por atacado''. (Idem, ibidem, cap.I, p.13).
O espaço
tomado como instrumento de análise apresenta vários aspectos. Dentre eles,
destaca-se a noção de espacialidade dimensional que pode ser mensurável e
divide-se em vertical e horizontal. A
ideia de verticalidade se relaciona com o espaço divino ou sobrenatural, a
noção de horizontalidade opõe-se a verticalidade, uma vez que a horizontalidade
é própria do espaço humano ou natural.
Dessa
forma, o romance naturalista busca muito mais que compor uma narrativa, mas,
projetar as personagens e suas ações numa posição em que os espaços falam por
si só carregando toda ideologia determinista de que o homem é produto do meio.
De
início, constata-se um espaço amplo e complexo, que pode ser inicialmente
caracterizado pela função específica para o qual foi construído: habitação
popular, o que fica explícito pelo “frontispício” de sua construção,
sinalizando também para o teor das relações humanas que se dão em seu bojo,
pelo próprio aspecto material de sua “auto-identificação”:
“Noventa
e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. Prontas, João Romão mandou
levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do
Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e
fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma
lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia
o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia:
Estalagem
de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”.
(AZEVEDO, 2000: 26)
CORTIÇO:
Seus
elementos têm uma constituição primária e estão ao nível da natureza e do
instinto. No espaço de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das
personagens caindo no código antirromântico de despersonalização; para o
narrador, no Cortiço, já não se distinguem homens de animais, objetos ou
vegetais.
SOBRADO:
Os
integrantes do espaço sobrado diferentemente da comunidade do Cortiço que
buscam no instinto e na violência meios para conseguir seus objetivos,
utilizam-se de regras culturalmente complexas e definidas para atingir suas
metas. Nota-se nesta citação o uso das máscaras sociais e o uso de regras
definidas culturalmente como forma de possuir o bem que se almeja.
Miranda é
o representante da elite burguesa do século XIX, sua condição social o
diferencia das classes baixas, sobretudo de João Romão que apesar de deter o
capital não participa da vida em sociedade. Com Miranda, João Romão entende que
não basta ter dinheiro, é preciso ostentar uma vida reconhecida e ativa na vida
burguesa.
Toda
movimentação de Romão, é para sair do solo puramente biológico e instintivo em
que se agita o cortiço e entrar numa organização social regida por um sistema
jurídico e político representativo da Cultura [...] representado pelo espaço do
Miranda.
Para
imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias mudanças na estalagem,
que ostenta depois das reformas com ares aristocráticos.
O cortiço
muda, perdendo seu caráter desorganizado e miserável para se transformar na
vila São Romão, superando em estrutura e beleza o sobrado do Miranda.
V –
TEMPO:
O tempo
narrativo acontece no final o século XIX e a narração é linear, ou seja,
predomina nele o que chamamos de tempo cronológico, linearidade ou diacronia
temporal. Essa linearidade, no entanto, é rompida vez ou outra com a inserção
de alguns flashbacks, rememorações ou digressões. Essas ocorrências não
colaboram para a quebra da referida linearidade e o romance, portanto, deve ser
considerado cronologicamente disposto.
Aliás, o
romance inicia-se com um flashback para explicar como João Romão iniciou seus
negócios.
VI -
LINGUAGEM:
Uma
análise estilística apresenta a linguagem de O Cortiço, em sua plurivalência de
nacionalidades: mostra como o francês, o italiano, o português de Portugal, o
falar do cortiço, o falar dos salões constituindo conjuntos que integralizam a
língua brasileira num sentido mais amplo.
Sua
língua é mestiça como suas personagens e se espalha pelo simples e pelo
complexo. Por aí se poderia chegar a tocar de novo no problema da ideologia que
configurou o romance. Ideologia esta que tanto mais se configura quanto mais se
sabe que a arte de Aluísio se voltava para o receptor. Sua produção tinha um
endereço certo: o jornal, o teatro e uma grande massa de leitores.
VII –
FOCO NARRATIVO:
O foco
narrativo é em terceira pessoa, muito comum à escola literária
realista-naturalista. Fica mais fácil, dessa forma, relatar de maneira objetiva
os fatos, os acontecimentos, e fazer a denúncia social de maneira isenta e
impessoal.
Além do
narrador do tipo observador, pode-se encontrar também o narrador onisciente,
que nos traz informações sobre o estado de espírito das personagens.
VIII –
PERSONAGENS:
Quando
Aluísio de Azevedo queria compor cenários, criar personagens, estereótipos,
tipos humanos fazia um laboratório em lugares aos da sua imaginação, conversava
com as pessoas que ali viviam, envolvia-se com seus problemas, seus hábitos,
sua origem e ia montando o quebra-cabeça de sua obra. Era o crítico que,
impiedosamente, compunha a sinfonia de pessoas de classes sociais inferiores,
marginalizados, discriminadas; exercendo seus temas favoritos: traição, as
taras sexuais, os preconceitos raciais, as patologias sociais.
Muitas
vezes, porque era um desenhista que se esmerava em tudo quanto fazia, compunha
cenas e personagens em papel-cartão, estudando quais aspectos seriam mais
realistas como acontecimentos, colocando tudo diante de si como se fossem acontecimentos
vívidos e planejando, a partir de seus desenhos, a continuidade das histórias
que inventada a partir da vida.
Aluísio
Azevedo sofreu larga influência do francês Émile Zola, cuja qualidade máxima é,
por excelência, representar a realidade com rigor científico. Da personagem
João Romão, por exemplo, traça um perfil que o coloca como uma metonímia de
todas as criaturas que imigram, sofrem e perdem-se no sentido de apenas
possuir.
Em “O
cortiço”, ocorre sistematicamente um fenômeno chamado zoomorfização
(animalização) dos seres humanos. O crítico literário Antonio Candido, no texto
“De cortiço a cortiço”, presente no livro “O discurso e a cidade”, observa que,
no Naturalismo, existe “uma tendência de conceber a vida como a soma das
atividades do sexo e da nutrição, sem outras esferas significantes”. Sendo
assim, não há como negar que na escola literária em questão o ser humano é
flagrado no conjunto social a que pertence, com ênfase nas baixas classes
sociais, e, ali, é exposto ao leitor da forma mais primitiva e animalizada:
comem, bebem, fazem sexo, brigam, matam e morrem.
São
criaturas grosseiras, seduzidas pelos instintos, condenadas a refletir em seus
comportamentos o universo coletivo do ambiente que habitam; por isso, o
narrador apresenta-nos os moradores daquele local e seus vícios, aproximando-os
do mundo animal: sensualidade, preguiça, instintos à flor da pele.
É
importante ressaltar, ainda e principalmente, que o cortiço não é apenas um
ambiente, espaço onde os acontecimentos se dão. De certa forma, especial e
insistente, é tratado pelo narrador como a principal personagem do romance.
IX –
RESUMO:
“O
cortiço” é composto por 23 capítulos, numerados em romanos, sem títulos
disponíveis.
“O
CORTIÇO”
I
“João
Romão foi, dos treze aos vinte cinco anos, empregado de um vendeiro que
enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos
do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de
anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de
ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto
e quinhentos em dinheiro.”
João
Romão trabalhou duro e perseverante; economizou e passou duras privações. Seu
objetivo único era enriquecer e todas as suas atitudes direcionavam a esse
empenho.
“Dormia
sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de
um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos
réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona,
escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português
que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.”
Bertoleza
também trabalhava pesado dia e noite e pagava a seu dono vinte mil-réis por
mês, e, apesar disso, tinha quase o montante para comprar sua alforria. Um dia,
o seu companheiro depois de puxar uma carga superior às suas forças, caiu
“morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.”
João
Romão mostrou grande interesse por esta desgraça e aproximou-se de Bertoleza. A
crioula confiou em João Romão e contou-lhe a sua vida de aflições e
dificuldades. Em seguida, “segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua
liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque
já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos
fundos.”
João
Romão passou a ser o caixa, o procurador e o conselheiro de Bertoleza. Era ele
quem administrava todas as suas economias e quem se encarregava de pagar ao “velho
cego” a dívida mensal. Abriu-lhe uma conta corrente e quando a quitandeira
necessitada de dinheiro pedia ao “Seu João” e ele debitava de um caderno em
cuja capa de papel pardo lia-se mal escrito e em letras cortadas de jornal:
“Ativo e passivo de Bertoleza”.
Bertoleza
confiava plenamente em João Romão e quando “deram fé estavam amigados”.
João
Romão propôs morarem juntos e ela aceitou de prontidão, porque, “como toda a
cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o
homem numa raça superior à sua.”
O
português comprou um terreno ao lado da venda com as economias da amásia e
construiu uma casinha dividida entre duas partes: a parte da frente destinada à
quitanda e nos fundos, um dormitório que ele ajeitou com os cacarecos de
Bertoleza.
O
vendeiro prometeu que a vida dela ia melhorar e que ela estaria livre em pouco
tempo, “eu entro com o que falta.”
Uma
semana depois, João Romão voltou com uma folha de papel toda escrita, dizendo:
“– Você
agora não tem mais senhor! Declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre
lágrimas agradecidas.”
Entretanto,
a carta de liberdade era falsa, era obra do próprio João Romão, que nem sequer
teve despesas de comprar um selo novo utilizando um selo já usado em outro
documento.
“O senhor
de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi
que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo.”
João
Romão, por sua vez, só ficou tranquilo quando soube três meses depois sobre a
morte do velho. É certo que, com a morte do velho, os herdeiros desses tinham
poder sobre a escrava: “dois pândegos de marca maior que, empolgada a legítima,
cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam
de muitos anos àquela parte.”
Bertoleza
trabalhava sem descanso, cuidando da casa, da venda e da quitanda: limpava,
costurava, vendia, cozinhava....Não havia descanso e nem passeios. Depois de um
ano morando juntos, João Romão adquiriu num leilão algumas braças de terra
situado ao fundo da taverna e sem perda de tempo, ergueu três casinhas.
“Que
milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia
de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra que o velhaco,
fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma
que subtraíam o material das casas em obra que havia por ali perto. (...) Nada
lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco
ou a ferramenta dos marceneiros”
Essas
três casinhas foram o começo de um grande cortiço que ali se fixou. O vendeiro
“ia conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e,
à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de
moradores.”
“Sempre
em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de
assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca
deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas,
comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus
senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações
sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão
veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias,
ao cair da tarde, assentado um instante à porta da venda, contemplava de longe
com um resignado olhar de cobiça.”
João
Romão contratou alguns homens para trabalharem na pedreira e seu lucro dobrou.
Nessa
época, um negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de
tecidos por atacado, Sr. Miranda, sua esposa Dona Estela e sua filha, Zulmira,
compraram o sobrado que ficava ao lado da venda do Sr. Romão. Sr. Miranda contava que Dona Estela não
suportava mais viver no centro da cidade e que sua filha Zulmira, precisa de
espaço para crescer. Mas, a verdade é que ele queria afastar Dona Estela dos
seus caixeiros.
“Dona
Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e
durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de
terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de
adultério (...)”
Não se
separou. Afinal, ela era rica e além de que, “um rompimento brusco seria obra
para escândalo, e, segundo a sua opinião qualquer escândalo doméstico ficava
muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição
social e tremia só com a ideia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem
coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas
regalias e afeito à hombridade de português que já não tem pátria na Europa.”
Passaram
a dormir separados, não comiam juntos e quase não conversavam. Odiavam-se e a
situação agravou-se com o nascimento de Zulmira.
“Estela
amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido,
e este a detestava porque tinha convicção de não ser seu pai.”
Uma
noite, Miranda sentiu desejo incontido foi até o quarto de Estela.
“Estela,
como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da
esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga
de nudez estofada e branca. O Miranda não pode resistir, atirou-se contra ela,
que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se,
tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de
olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de
tudo aquilo.”
No dia
seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada tivesse
acontecido entre eles na noite anterior. Depois de um mês, Miranda, acometido
de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher.
“Miranda
nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. (...)
Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe
sentira; notou-lhe outro hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E
gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio com verdadeira satisfação de animal no
cio. E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância
picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que
a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes,
grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também agora, como
homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca
a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço
gutural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de
pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos,
toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.”
Viveram
anos muito bem casados; mas, agora que o Miranda já não tinha tantas crises que
o levavam ao quarto de Estela, ela passou a dar corda aos caixeiros do marido.
O sobrado
era bom, faltava-lhe um pouco de quintal. Miranda procurou João Romão para
negociar algumas braças daquele terreno do fundo que ia até a pedreira.
Discutiram
e João Romão afirmou que queria comprar o pequeno quintal de Miranda. A partir
daí, travou-se uma rixa entre Miranda e João Romão: Sr Miranda não fazia o muro
do seu quintal e João Romão esperançava em adquirir aquele terreno e construir
uma estalagem.
Romão
passou a frequentar leilões de materiais de construções e adquiriu um arsenal
de materiais de segunda mão e usados que misturava com aqueles outros,
roubados.
Uma noite
João Romão conversava na cama com Bertoleza:
“– Deixa
estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre
pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mais seis,
oito, todo o quintal e até o próprio sobrado talvez!”
João
Romão visava só aumentar seus bens. Recolhia para si e para a companheira os
piores legumes, aqueles que ninguém compraria; vendia todos os ovos que suas
galinhas produziam e alimentava-se dos restos da comida dos trabalhadores.
“E seu
tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer (...).”
Os seus
negócios iam bem. O bairro povoava-se e expandia-se rapidamente e a maioria dos
trabalhadores da região comia à Casa de pasto que João Romão arranjara aos
fundos da sua varanda e frequentavam à sua taverna. Passou adquirir mercadorias
da Europa: o vinho que vinha agora de Portugal às pipas, de cada uma fazia três
acrescentando-lhes água e cachaça e despachava faturas de barris de manteiga,
de caixas de conserva, caixões de fósforos, azeite, queijos, louça e muitas
outras mercadorias.
De uma
simples taverna transformou-a num grande bazar; criou depósito; aboliu a
quitanda e transferiu o dormitório.
“Por ali
não se encontrava jornaleiro (operário), cujo ordenado não fosse inteirinho
parar às mãos do velhaco.”
Emprestava-lhes
dinheiro e cobrava juros de 8% ao mês, um pouco mais que os penhores.
As
casinhas do cortiço enchiam-se, logo. Os empregados da pedreira davam
preferência morar perto do trabalho.
Miranda
ficava furioso: o cortiço desvalorizava o seu sobrado. Enfim, Miranda mandou
levantar o muro.
Romão
mandou colocar uma tabuleta na frente: “Estalagem de São Romão. Alugam-se
casinhas e tinas para lavadeiras”.
As
casinhas eram alugadas por mês, num total de 95 casinhas e as tinas por dia;
tudo pago adiantado. As moradoras do cortiço tinham direito a lavar sem pagar.
“Graças à
abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito
espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às
tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade,
entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um
quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a
disputá-los.”
“E
naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou
a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração,
que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se
como larvas no esterco.”
II
Durante
dois anos o cortiço prosperou de dia para dia e isso, irritava Sr. Miranda que
se remoia a pensar que: “aquele tipo! Um miserável, um sujo, que não pusera
nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa com uma negra!”
“(...)
Tinha inveja do outro, daquele outro português que fizera fortuna, sem precisar
roer nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais rico três vezes do que
ele, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum
fazendeiro freguês da casa!”
“(...)
Miranda, que se supunha a última expressão da ladinagem e da esperteza (...)
ele, que se tinha na conta de invencível matreiro, não passava afinal de um
pedaço de asno comparado com o seu vizinho!”
“(...) No
fim de contas qual fora a sua África?”
Quanto à
Zulmira, “Miranda nem sequer gozava o prazer de ser pai e a pobre criança nada
mais representava que o documento vivo do ludíbrio materno, e o Miranda
estendia até a inocentezinha o ódio que sustentava contra a esposa.”(...) Feliz
e esperto era o João Romão! (...) esse, sim, que era moço e podia ainda gozar
muito, porque quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe saísse uma outra
Estela era só mandá-la para o diabo com um pontapé! Podia fazê-lo! Para esse é
que era o Brasil!”
Esses
pensamentos levaram Miranda a um novo ideal: um título. Lembrou-se de que
Estela é que possuía sangue nobre e, que ele, por sua vez, se não o tinha
herdado, trouxera-o por natureza própria, o que devia valer mais ainda; e desde
então principiou a sonhar com um título de barão; seria um empreendimento que
ninguém lhe tomaria e um dinheiro de sua esposa, que ele empregaria.
Mudou
seus comportamentos e passou a cumprimentar o seu vizinho. Depois, abriu a sua
casa e deu uma festa.
Zulmira
tinha “doze para treze anos e era o tipo acabado da fluminense; pálida,
magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das pálpebras e
dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom úmido das
flores noturnas, uma brancura fria de magnólia; cabelos castanho-claros, mãos
quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da mãe, dentes pouco mais
claros do que a cútis do rosto, pés pequeninos, quadril estreito mas os olhos
grandes, negros, vivos e maliciosos.”
Nessa
época chegou de Minas, Henriquinho, garoto de 15 anos que veio fazer
preparatórios para o curso de Medicina e ficará hospedado no sobrado. Era o
filho de um fazendeiro importante que dava lucros à casa comercial de Miranda.
Henrique
era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de menina. Era
estudioso e bem econômico. Estela demonstrou carinho quase maternal pelo garoto
e passou a tomar conta da sua mesada. Às vezes, Henrique passeava com Estela,
Zulmira e um moleque, o Valentim e acompanhava-as às festas em casa das amigas.
A
criadagem da casa de Miranda era composta por: Isaura (mulata ainda moça,
moleirona e tola), Leonor (negrinha virgem, muito ligeira e viva, lisa e seca
como um moleque, conhecedora da vasta tecnologia da obscenidade) e Valentim
(filho de uma escrava que foi de Estela e a quem esta havia alforriado, era
protegido de Estela).
Além de
Henriquinho, havia outro hóspede, o velho Botelho. Era um pobre-diabo, quase 70
anos, antipático, cabelo branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do
mesmo teor, muito amarelento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o
tamanho da pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de
acordo com o seu nariz curvo e com a sua boca sem lábios. Viam-se-lhe ainda
todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam desgastados até ao meio.
“Andava
sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu Braga
enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor
de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África negociando
negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do
Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e,
de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave
de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desilusões, cheio de
hemorróidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava a sombra do Miranda, com
quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de
quem se conservara amigo, a princípio por acaso e mais tarde por necessidade.”
Botelho
vivia criticando as ideias da época; principalmente, quando a discussão era o
movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco.
“E, para
individualizar o objeto do seu ódio, voltava-se contra o Brasil, essa terra
que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer os portugueses, e que,
no entanto, o deixara, a ele, na penúria.”
A sua
paixão era o militarismo, comovia-se com a presença de um oficial fardado e
quando ouvia tocar na rua a corneta ou o tambor conduzindo um batalhão, quando
dava por si, fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Irritava-se com os mimos
dispensados ao Valentim e conhecia todas as falhas de Estela, pois era
confidente de Miranda e concordava que os sérios interesses comerciais estavam
acima de tudo.
“– Uma
mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada menos que o
capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, você o que devia
era nunca chegar-se para ela...
- Ora!
Explicava o marido. Eu me sirvo dela como quem se serve de uma escarradeira!”
Mas por
outro lado, quando ouvia Estela reclamar do marido, resplandecia de contente.
Dizia, ela:
“– Desgraçadamente para nós, mulheres de
sociedade, não podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que
tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste!
Juro-lhe, porém, que, se consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é
porque entendo que paga mais à pena ceder do que puxar discussão com uma besta
daquela ordem!”
Botelho
mantinha-se fiel aos dois. Um dia surpreendeu “Estela entalada entre o muro e o
Henrique” e disse:
“– Isso é
uma imprudência o que vocês estão fazendo!...Estas coisas não é deste modo que
se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa...(...) Se vi, creia,
foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar com a vida de cada um!...A
senhora está moça, está na força dos anos; seu marido não a satisfaz, é justo
que o substitua por outro! Ah!isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que
o fizemos torto!...Até certa idade todos temos dentro um bichinho-carpinteiro,
que é preciso matar, antes que ele nos mate!”
Depois,
Botelho aproximou-se de Henrique e segredou-lhe em tom protetor:
“– Não
torne a fazer isto assim, que você se estraga...Olhe como lhe tremem as pernas!
[...] Só abrirei o bico se você me der motivo para isso...não se meta com
donzelas, entende?...São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em
apuros! Agora quanto às outras, papo com elas!”
E
acrescentou:
“– Fique
então sabendo de que não é só a ela que você faz o obséquio, mas também ao
marido: quanto mais escovar-lhe você a mulher, melhor ela ficará de gênio, e
por conseguinte melhor será para o pobre homem, coitado! Que tem já bastante
que se aborrecer lá por baixo, com os seus negócios, e precisa de um pouco de descanso
quando volta do serviço e mete-se em casa! E creia que lhe falo assim, porque
sou seu amigo, porque o acho simpático, porque o acho bonito!. Em seguida,
acarinhou-o e Henrique fugindo-lhe das mãos, afastou-se com um gesto de
repugnância e desprezo.”
III
“Eram
cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua
infinidade de portas e janelas alinhadas. [...] Entretanto, das portas surgiam
cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o
marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras
a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros;
trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias;
reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já,
e lá dentro das casas vinham choro abafados de crianças que ainda não
andam...[...] Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma
aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco
palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as
coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço,
que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens,
esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem
debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e
fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era
um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se
demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças
não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos
fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.”
Odia
começava já “sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa
[cheia de força] de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama
preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação
de respirar sobre a terra.”
Das
janelas do sobrado do Miranda apareceu a Isaura, começando a limpeza da casa e,
em seguida, a Leonor. E o trabalho principiava: o padeiro apareceu na
estalagem; a fábrica de massas italianas engrossou o barulho com o seu arfar
monótono de máquina a vapor; algumas lavadeiras começaram a lavar; mercadores
ofereciam carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; os mascates com suas
quinquilharias; o sardinheiro e o carroção de lixo, e, de longe rompiam os
fados portugueses e as modinhas brasileiras
Leandra,
conhecida por “Machona”, foi a primeira que se pôs a lavar. Era uma portuguesa
feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha
três filhas: uma filha casada e separada do marido, Ana das Dores, a “das
Dores”; outra uma donzela ainda, a Neném e um filho, o Agostinho, menino levado
dos diabos. Somente a “das Dores” não morava no cortiço. Ninguém sabia sobre o
passado da Machona e seus filhos não se pareciam uns com os outros.
Neném, 17
anos, espigada, franzina, forte e virgem. Boa engomadeira e sabia fazer roupa
branca de homem com muita perfeição.
Em
seguida, chegou a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher do soldado
Alexandre, um mulato de 40 anos, soldado de polícia, pedante, de grande bigode
preto, queixo sempre barbeado, um luxo de calças brancas engomadas e botões
limpos na farda, quando estava de serviço. Quando estava de descanso, ele era
sociável, mas quando vestia o uniforme ninguém mais lhe via os dentes e então a
todos falava com autoridade. Tinham filhos pequenos e um deles, a Juju, vivia
com a madrinha Léonie, francesa e prostituta.
Junto
dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro chamado Bruno,
portuguesa pequena, de carnes duras, com fama de leviana.
Seguia-se
a Paula, conhecida por “Bruxa”. Era uma cabocla velha, meio idiota, feiticeira,
extremamente feia, grossa, triste, de dentes cortados à navalha e cabelos lisos
e escorridos. Também, a Marciana, mulata séria e muito asseada que quando
estava com raiva punha-se a limpar a casa e se a raiva fosse muito grande,
lavada o chão da sala com muita fúria, por isso a casa estava sempre úmida. E
sua filha Florinda de 15 anos, pele de um moreno quente, beiços sensuais,
bonitos dentes e olhos luxuriosos de macaca. Para elas, o vendeiro fazia
pequenas concessões nas compras e não roubava no preço das mercadorias.
Florinda era virgem e, embora “toda ela estava a pedir homem”, não cedia às
investidas de João Romão.
Em
seguida, via-se a Dona Isabel, uma pobre mulher comida de desgostos. Fora
casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e suicidou-se,
deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo
para educar, dando-lhe mestre até de francês.
“Tinha
uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda, bochechas
moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca como saquinhos
vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos engolidos pelas
pálpebras.”
Vestia-se
sempre de preto e a única herança que lhe restara era uma caixa de rapé de
ouro. Sua filha, a Pombinha, era a “Flor do cortiço”. Era bonita, loira, muito
pálida, nervosa, enfermiça e com modos de menina de boa família. Tinha um
noivo, João da Costa, moço do comércio, estimado do patrão e dos colegas, com
muito futuro.
O
casamento ainda não se realizara porque Pombinha aos seus 18 anos de idade “não
tinha ainda pago à natureza o cruento tributo da puberdade” [menstruação],
daquele casamento dependia a felicidade de ambas, afinal o Costa era bem
empregado e podia restituí-las ao seu antigo círculo social. A mãe rezava todas
as noites pedindo essa graça a Deus, mas nunca consentiria que sua mulher casasse
antes de “ser mulher”.
No
cortiço essa história era conhecida por todos e todos davam conselhos e
cumprimentavam o Costa com ares de piedade por essa má sorte.
Pombinha
era muito querida no cortiço: escrevia as cartas, lia o jornal, tirava as
contas e fazia a lista para as lavadeiras.
O próximo
era o Albino: sujeito afeminado, fraco, cabelos castanhos, deslavado e pobre
que lhe caía, numa só linha, até ao pescoço mole e fino. Vivia entre as
mulheres e estas o tratavam como se fosse do mesmo sexo; faziam-lhe
confidências que não fariam a um homem. Era sempre ele que reconciliava uma
briga de casal ou entre mulheres. Guardava dinheiro o ano todo e no carnaval,
fantasiava-se de dançarina e ia passear pelas ruas e dançar nos bailes dos
teatros. Vivia sempre asseado, não fumava, bebia espíritos e trazia sempre as
mãos geladas e úmidas.
Enquanto
as lavadeiras faziam seus serviços, por uma porta que havia ao fundo da
estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira.
Surge um
rapaz que vem perguntar sobre o paradeiro de Rita Baiana. As lavadeiras
discutem sobre a vida de Rita Baiana: Leocádia acredita que ela deve estar de
folia com o Firmo; Augusta acha que é uma irresponsável, afinal com tanta roupa
para lavar e ficar na vadiagem, ”parece que tem fogo no rabo! Pode haver o
serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado”
Quando
davam nove horas o movimento da venda duplicava. Os operários das fábricas
chegavam para o almoço e Bertoleza ia e vinha de uma panela à outra, fazendo
pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores. O cheiro do azeite
predominava; o parati circulava por todas as mesas; discutia-se a berros e
depois “daquela comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga
bem cheia, a arrotar”.
Um
português de seus trinta e cinco anos a quarenta anos, alto, de ombros largos,
barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, pescoço
de touro e cara de Hércules, na qual os olhos humildes com os olhos de um boi
de canga [submisso] exprimiam bondade surge para conversar com João Romão.
IV
Tratava-se
de Jerônimo e foi indicado por Machucas para trabalhar na pedreira de João
Romão. Jerônimo pede 70 mil réis e João Romão diz que esse ordenado é impossível
pagar. Jerônimo alega que vale a pena pagar um pouco mais a um trabalhador bom
a correr riscos como já havia acontecido na pedreira de João.
João
Romão acompanha Jerônimo até a pedreira e no caminho passam pelas lavadeiras
que já tinham almoçado e retornado aos seus afazeres. Ao encontrarem Florinda,
João aproveita de dá-lhe uma palmada nas nádegas. Na pedreira encontravam-se
trabalhadores por toda a parte, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas
feitas de lona ou de folhas de palmeira. Jerônimo critica a maneira que estão
lidando com a pedra e apresenta argumentos técnicos que com certeza, João Romão
tiraria mais lucros, inclusive dispensando alguns trabalhadores que não
executavam seus serviços corretamente e substituindo-os por bons trabalhadores.
João
Romão contratou Jerônimo nas condições dele se mudar para o cortiço e fazer as
suas compras na venda. E pensou lá de si para si: “Os meus setenta mil réis
voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica em casa!”
V
No dia
seguinte Jerônimo e sua esposa Piedade de Jesus mudaram para o cortiço.
Piedade
aparentava trinta e cincos anos, boa estatura, carne ampla e rija, cabelos
fortes de um castanho fulvo, dentes poucos alvos, mas sólidos e perfeitos, cara
cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona [boa e boba], de uma
simpática expressão de honestidade simples e natural. Chegaram ambos à boléia
da andorinha [carro de mudança] e enquanto descarregavam seus pertences eram
acompanhados por comentários e olhares curiosos dos moradores.
Jerônimo
viera de Portugal com a esposa e uma filha pequena tentar a vida no Brasil.
Trabalhou por dois anos numa fazenda e “se retirou de mãos vazias e uma grande
birra pela lavoura brasileira. Para continuar a servir na roça tinha que
sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com eles no mesmo meio
degradante encurralado como uma besta, sem aspirações, nem futuro, trabalhando
eternamente para o outro.”
Em poucos
meses se apoderava do seu novo ofício: o de quebrador de pedras e ganhou
confiança de seu novo patrão. A vida ia bem, colocou sua filha numa escola e
sua casinha era a mais respeitada e decente do lugar. Mas, o patrão morreu e os
herdeiros fizeram uma reforma na pedreira que desgostou Jerônimo. Jerônimo,
então foi procurar João Romão.
João
Romão estava contente com o desempenho de Jerônimo. Com o seu exemplo os
companheiros tornaram-se mais sérios e zelosos. No fim de dois meses João Romão
vibrava com a contratação de Jerônimo.
Jerônimo
também ganhou a amizade e a confiança dos moradores do cortiço. Era visto como
superior e procurado como confidente e conselheiro. Trabalhava o dia inteiro e
só voltava à casa ao cair à tarde, faminto e cansado. Piedade preparava uma
comida típica da terra deles e depois ficavam em paz conversando sobre o futuro
de Marianita que estava no colégio e que só os visitava aos domingos e dias
santos. Depois, tocava na sua guitarra, os fados de sua terra, transparecendo
claramente as saudades de sua pátria.
VI
Domingo
no cortiço...as tinas abandonadas; as casinhas fumegando um cheiro bom de
refogados de carne fresca; alguém declamando os versos de “Os Lusíadas”, outros
lendo jornais; na venda trabalhadores bebendo vinho e cervejas e todos de roupa
mudada depois de uma semana no corpo.
Nesse
momento, aparece Rita Baiana que estava ausente há meses, durante a qual só
dera notícias suas nas ocasiões de pagar o aluguel do cômodo. Todos correm ao
seu encontro querendo saber notícias.
“Não
vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava
ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de
diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca,
havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha e um odor sensual de
trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril
baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de
dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce
fascinador.”
Contou
que estava em Jacarepaguá com o Firmo e que agora o namoro era sério. Leocádia
pergunta-lhe por que ela não casa com o Firmo?
“– Casar?
Protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê?
Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é
escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do
que é seu!”
Falava a
todos e para cada um tinha um comentário, um riso ou um carinho. Inclusive,
para com o velho Libório, seco que parecia mumificado pela idade.
Para
maior alegria dos moradores, Rita Baiana avisa que à noite teriam pagode.
Depois, pergunta quem eram “aqueles jururus que estão agora no 35”?
VII
Às três
da tarde, chegou o Firmo acompanhado pelo seu amigo Porfírio, trazendo violão e
cavaquinho.
Firmo era
um mulato pachola [cheio de si], delgado de corpo e ágil como um cabrito;
capadócio [trapaceiro] de marca, pernóstico; só de maçadas, e todo ele se
quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas
não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos, pescoço
estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha nervos. A respeito de barba,
nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a
brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encaracolada negra, dividida ao meio
da cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grandes gaforina [topete]
por debaixo da aba do chapéu de palha, que ele punha de banda, derreado sobre a
orelha esquerda. Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já
bastante usado, calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe
engoliam os pezinhos secos e ligeiros. Não trazia gravata, nem colete, sim uma
camisa de chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e
perfumado; à boca um enorme charuto e na mão um grosso porrete de Petrópolis.
Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar
num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e
então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa boa pândega
com a Rita Baiana ou com outra. Era carioca, militara dos 12 aos 20 anos em
diversas maltas de capoeiras, ajudara a decidir eleições nos tempos do voto
indireto e buscava um lugar de contínuo numa repartição pública e receber
setenta mil réis mensais pelo trabalho das nove às três.
Firmo
conheceu Rita Baiana assim que ela chegou da Bahia junto com a mãe. Logo, a mãe
morreu e Firmo cuidou de Rita Baiana. Apaixonou-se por ela, mas por causa de
ciúmes acabaram se separando, e ela, apesar de volúvel como toda mestiça, não o
esquecia e acaba reatando o seu namoro.
E não
tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão. Defronte da porta de Rita
surgiam diversos moradores do cortiço, jornaleiros de baixo salário, gente
miserável, que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia
entre eles um só triste. Até Libório apareceu com a cara esfomeada. Rita
convidou-o para entrar e deu-lhe de comer e de beber. O velho avarento comeu
até engasgar com um pedaço de carne e vomitar sobre a mesa. Albino, por sua
vez, não comia nada, tudo lhe fazia mal. Rita disse-lhe que esses sintomas eram
semelhantes à gravidez.
Do
sobrado do Miranda também vinha muitos barulhos. Saía de lá gritarias de hurras
e desarrolhar de champanhes.
Leocádia
vira Dona Estela e Henrique agarrados...
Nisso,
escutam uns versos saudosos acompanhados por uma guitarra da porta do 35:
“Minha
vida tem desgostos,/Que só eu sei compreender.../Quando me lembro da
terra/Parece que vou morrer.../Terra minha, que te adoro,/Quando é que eu te
torno a ver?/Leva-me deste desterro;/Basta já de padecer.”
A
tristeza daqueles versos começou a abater os ouvintes, mas a música crioula
retomou a alegria, “eram lúbricos [sensuais] gemidos e suspiros soltos em
torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram
ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços
gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.”
Jerônimo
e Piedade aproximaram-se da roda e observam Rita dançando “feita toda de
pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher [...]
rebolando as ilhargas [ancas] e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora
para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso
que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços
estendidos, a tremer toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem
azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se
voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando
as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida
sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que
dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda,
fibra por fibra, titilando.”
Jerônimo
via naquela mulata a “síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela
era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda;
era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras;
era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era
o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti [fruto doce] mais doce que o mel
e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a
cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa [pegajosa], a muriçoca [mosquito]
doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe
os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas [moles] pela saudade da terra,
picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele
amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma
larva daquela nuvem de cantáridas [insetos usados pela medicina como
afrodisíaco] que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa
fosforescência afrodisíaca.”
Piedade
se retirou e Jerônimo não deu pelas horas, já pela madrugada viu a Rita sendo
levada para o quarto pelo seu homem e ficou sozinho no meio da estalagem e
sentiu “formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o
coração”.
VIII
No dia
seguinte Jerônimo voltou na hora do almoço e caiu de cama. Pediu para Piedade
avisar João Romão que não trabalharia mais naquele dia. A notícia espalhou-se e
depois de receber muitas visitas e expulsá-las, apareceu Rita Baiana. Jerônimo
ao vê-la, sorriu.
Rita
ofereceu-se fazer uma xícara de café bem forte com um gole de parati (cachaça)
para curar o português.
Piedade
voltou preocupada com o estado de saúde do marido e ele trata-a agressivamente,
negando tomar o chá, o escalda-pés e dispensando o seu carinho. A esposa
dedicada acreditou que fosse por causa da doença. Jerônimo secamente manda que
Piedade volte para a tina, lavar as roupas.
“Ela ia retirar-se,
como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e
sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com parati e no ombro
um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.”
A
portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no íntimo, ressentida contra
aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a
inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro
sutil e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho
exposto.
Rita
retornou ao quarto do doente. Jerônimo passou o braço em sua cintura e procurou
com a mão direita segurar a dela, queria agradecer-lhe, mas um desejo ardente
dominou o seu corpo.
Nesse
momento, ocorreu um escândalo no pátio da estalagem.
Henrique
que, da janela do sobrado gesticulava-se eroticamente à Leocádia, naquele dia
excedeu-se: mostrou-lhe um coelhinho que ela cobiçou. E, através da mímica,
declarou com um gesto a condição para a aquisição do coelho.
“Ela
meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que a esperasse por
detrás do cortiço, no capinzal dos fundos. [...] Leocádia olhou para os lados,
assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se
sobre ela, que o conteve.
- Espera!
Preciso tirar a saia; está encharcada!
- Não faz
mal! Segredou ele, impaciente no seu desejo.
- Pode-me
vir um corrimento!”
Leocádia
lançou-se de costas ao chão com as coxas abertas e o estudante atirou-se,
sentindo-lhe à frescura da carne da lavadeira, mas sem largar as pernas do
coelho. A lavadeira pede-lhe que faça um filho, para que ela pudesse alugar-se
de ama de leite, pois estavam pagando muito bem. Enquanto, pedia para que o
estudante fosse mais devagar, pois podia matar o bichinho.
“Ia dizer
ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e pôs-se a
dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes.”
Quando,
Henrique viu a figura do Bruno, saiu correndo e o coelho que, vendo-se livre,
ganhou pela outra banda o caminho do capinzal.
Bruno
perguntava com quem a esposa se esfregava e chamava-a de vaca, no mesmo tempo
que a esbofeteava e dava-lhes pontapés. Leocádia, nesse momento, pegou uma
pedra grande e ameaçava Bruno.
Bruno
expulsa Leocádia de casa e esta aponta a barriga mostrando como ela ia ganhar a
vida. Irritado, Bruno lança pela janela os pertences da esposa infiel e, o
cortiço participa assistindo à cena e com comentários paralelos.
Nesse
momento, um irmão do Santíssimo entra na estalagem pedindo uma esmola para a
cera do Sacramento. Leocádia arremetendo-se contra a porta de sua casinha, que
Bruno havia acabado de fechar, arrebenta-a, indo ela cair lá dentro de barriga
para cima.
Os
moradores riam e ela raivosa atirava cada um dos seus pertences.
Alexandre
chega para acalmar a situação e pede para que o Bruno deixasse a mulher em paz,
sob pena de seguir para a estação. Ele alega que pegou a esposa em pleno
adultério e a esposa nega em lágrimas. Rita Baiana aproxima-se e retira
Leocádia do local.
IX
Passaram-se
semanas e uma transformação, lenta e profunda, operava-se em Jerônimo. A sua
energia afrouxava lentamente; fazia-se contemplativo e amoroso.
“A vida
americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e
sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição;
para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal,
imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos,
tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se vencido às
imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente
revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores
aventureiros. E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos
singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. [...] Tinha agora o
ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos
sertanejos...”
Piedade de
Jesus, no entanto, conservava-se inalterável, sem conseguir, à semelhança do
esposo, afinar a sua alma pela alma da nova pátria que adotaram e estava triste
porque Jerônimo fazia-se outro e evitava-a. Temia que Jerônimo não a “queria
para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa”. Até que
esse dia chegou. Jerônimo alegando estar com calor, abandonou a cama e foi
deitar-se no sofá da salinha. Desde então, não dormiram mais ao lado um do
outro. Dias depois, armou a rede defronte da porta de entrada. Em outro dia,
reclamou que Piedade devia tomar banho todos os dias e mudar de roupas. Ela
começou a chorar e Jerônimo ralhou com ela.
Piedade
tinha certeza do interesse do marido por Rita Baiana. Ele não passava pelo nº 9
sem parar e prosear com a mulata. Falavam sobre a saúde, sobre Leocádia que
estava grávida. Nas noites de samba era o primeiro a chegar e o último a sair.
Durante o pagode ficava de queixo bambo ao ver dançar a mulata.
Piedade
consultou Dona Paula para fazer algo que trouxesse Jerônimo de volta. A Bruxa ensinou-lhe uma simpatia: banhasse
todos os dias e desse a beber ao seu homem, no café pela manhã algumas gotas
das águas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regime não produzisse o
desejado efeito, então cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os até
os reduzir a pó e lhos ministrasse depois da comida.
Firmo
também se preocupava com Rita. Ele morava num cômodo na oficina em que
trabalhava e só ficavam juntos aos domingos durante o dia e então não relaxavam
o seu jantar de pândega. Um dia fora vê-la fora de hora e encontrou-a
conversando com Jerônimo. No jantar ficou de mau humor e recordou-se de suas
façanhas de capoeiragem e das mortes acumuladas.
Rita
avisou Jerônimo de que se acautelasse.
Nesse
dia, ocorreu outro escândalo no nº 12, entre a velha Marciana e sua filha
Florinda. Marciana percebera que o fluxo menstrual da filha estava atrasado e
naquele dia, viu a filha vomitar. Marciana chamou D. Paula que examinou a
menina e confirmou que era gravidez. Em seguida, partiu aos murros em cima da
filha. A menina fugiu pela janela e agrupou-se com os moradores que atraídos
pelos gritos estavam na porta do nº 12. Pressionada pela mãe, Florinda
confessou que foi o Domingos, o autor de sua desgraça.
Marciana
arrastou a filha e acompanhada por um grupo de moradores até a porta lateral da
venda e gritou por João Romão.
“– Venho entregar-lhe esta perdida! Seu
caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela”
Florinda
confirmou que foi o Domingos o responsável: “um dia de manhãzinha, às quatro
horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...”
As
pessoas foram posicionando-se e principiaram os comentários, os juízos pró e
contra o caixeiro, enquanto Domingos negava-se a casar com Florinda. Os
moradores fizeram um cerco para evitar que Domingos fugisse e ameaçavam chamar
a polícia.
João
Romão ordenou que Domingos não saísse naquele momento e foi ao terreiro
comunicar que o rapaz estava disposto a casar-se com Florinda.
“E, se
não casar, a pequena terá o seu dote!”
João
Romão, em seguida, dispensou o caixeiro “sem acertar as suas contas”, afirmando
que o saldo do funcionário não chegava para pagar o dote da rapariga.
À noite,
Augusta e Alexandre, receberam a visita da comadre, Léonie e a afilhada Juju.
Léonie
era prostituta de casa aberta, mas prezava de respeito da comadre e de todos do
cortiço. A admiração por Léonie devia à sua generosidade e à impressão
deslumbrada que ela causava com seu luxo, sua extravagância e seus hábitos
afetados.
Piedade
ao ver Léonie comenta que a roupa branca da madama era rica como a da Nossa
Senhora da Penha; Nenen, disse que a invejava; Albino contemplava-a em êxtase e
Rita Baiana oferece rosas declarando que: “(...) esta não está sujeita, como a
Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das
suas ações! Livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só
entrega a quem muito bem lhe der na veneta!”
Enquanto
isso, Juju recebia elogios: “rica pequena!”; “é um enlevo olhar a gente pro
demoninho!”; “é mesmo uma lindeza de criança!”; “uma criaturinha dos anjos!”;
“uma boneca francesa!”; “uma menina Jesus!”
Léonie
perguntou sobre a Pombinha e demonstrou indignação ao saber que a menina estava
comprometida. Mandou buscar cervejas e quando Pombinha chegou, recebeu-a com
exclamações de agrado, beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.
“E uma
amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as
outras.”
Léonie
convida Pombinha e sua mãe para jantarem no domingo em sua casa e cochicha que:
“– Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?”
X
O sobrado
estava em preparos para o Miranda receber seus convidados, por conta do seu
título de Barão do Freixal. E, no cortiço circulava a notícia de que Domingos
desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o substituía ao balcão.
Marciana foi queixar-se ao João Romão e ele afastou-se, indiferente, afirmando
que não “podia trazê-lo pendurado ao pescoço!”
Mãe e filha
passaram a tarde inteira procurando seus direitos e voltaram arrasadas para a
casa, logo que se inteiraram da escassez de recursos de ambas as partes.
Marciana para afastar sua raiva põe-se a lavar a casa e Florinda começou a
chorar.
“– Agora deste para chorar, hein? Mas na
ocasião do relaxamento havias de estar bem disposta!”
Em
seguida, precipitou-se sobre a filha com um pedaço de madeira. Florinda foge e
a mãe cai numa dor humilde enternecida de mãe que perdeu o filho.
João
Romão chegou à porta e ordenou à Marciana que despejasse o número 12.
O
vendeiro estava transtornado desde o momento em que leu no “Jornal do
Comércio”, que o vizinho estava barão!
À noite,
quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, sonhou com um mundo diferente,
habitado por seres superiores e luxuosos, que ele via descendo para a terra,
chegando ao seu alcance.
Ao seu
lado, Bertoleza “roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço,
tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.”
“As seis
estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras
nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta à
entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona
Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda
de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora....[...] João
Romão via tudo isso com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas
entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o mais acertado: -
ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de
camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à
farta?...Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento
igual ao do vizinho?...Dinheiro não lhe faltava para isso...Sim, de acordo! Mas
teria ânimo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?...sacrificar uma tetéia para
o peito?...Teria ânimo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo
famílias e cercando-se de amigos?...Teria ânimo de encher definas iguarias e
vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco
condescendente para com a própria?...E, caso resolvesse mudar de maneiras,
montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria somente da sua
vontade?...”
Esses
questionamentos causaram uma dolorosa desconfiança de si mesmo e uma terrível
convicção da sua impotência.
“– Teria
gasto mais, é verdade!...Não estaria tão bem!...mas, ora adeus! Estaria
habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!...Seria um homem
civilizado!....”
Passou o
dia implicando com todos: com o fiscal da rua; com o gato da Machona; com as
crianças de seu caminho; com o Libório; com os italianos e depois com Marciana
que não havia despejado o quarto.
“– Aqui
mando eu! Aqui sou eu o monarca! E tinha gestos inflexíveis de déspota.”
Marciana,
desde que Florinda lhe fugira, só chorava e agora, assistia ao seu despejo
resmungando um interminável monólogo desconexo.
Algumas
mulheres foram prestar-lhe ajuda, mas Marciana não respondia.
A festa
no sobrado do Miranda continuava ao som de músicas e risos. Às vezes, Henrique
saía à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava nesse dia com a mãe,
em casa de Léonie.
João
Romão brigou com os caixeiros, com Bertoleza e depois foi maldizer o Jerônimo:
“- O tal
seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo!
Perdia noites no samba! Não largava os rastros da Rita Baiana e parecia
embeiçado por ela!”
Na venda,
João Romão recebe através de um caixeiro, um convite do Miranda convidando-o a
tomar uma xícara de chá, no sobrado, à noite.
De inicio
ficou lisonjeado com o convite, mas depois achou que se tratava de uma
provocação.
Alguns
negros por compaixão haviam arrastado Marciana para dentro da venda e Romão ao
ver entrar um policial, todo molhado pela chuva e pedir uma dose de parati,
apelou para ele, dizendo:
“–
Camarada, esta mulher é gira não tem domicílio, e eu não hei de, quando fechar
a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!”
Uma hora
depois, Marciana foi carregada para a cadeia e seus pertences recolhidos ao
depósito público por ordem do inspetor do quarteirão.
À noite,
empolgados pela festa do Miranda, o samba começou mais cedo no cortiço. Rita
Baiana dançava e “cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar
choroso de pomba no cio.
E o
Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam
com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos
sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano com línguas
finíssimas de cobra.”
Jerônimo
não pode conter-se, segredou a mulata que:
“– Meu
bem! Se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!”
Firmo
percebeu, mas conteve-se até quando Rita derreou-se toda sobre o português e
soprou-lhe um segredo, requebrando os olhos.
Os
instrumentos silenciam e os dois homens posicionam-se para uma briga. Piedade
tentou arrastar seu homem dali, mas foi empurrada pelo marido que ameaçava o
Firmo:
“-
Deixa-me ver o que quer de mim este cabra! ...rosnou ele.
- Dar-te
um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu, Firmo.”
A luta
principiou. As mulheres querendo apartar, enquanto João Romão fechou a venda e
o portão da estalagem, correndo para o lugar da briga.
“O terror
arrancava gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa
distância, via, de braços cruzados, aqueles dois homens se baterem por causa
dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. [...] Piedade berrava
reclamando polícia e as janelas do Miranda acumulavam-se de gente...”
Jerônimo
voltou de sua casa com um varapau minhoto (pedaço de madeira, comprido e torto,
que serve de apoio e de arma, o adjetivo minhoto refere-se à região do Minho,
em Portugal) e Firmo com o rosto banhado de sangue pegou uma navalha e desferiu
um golpe em Jerônimo, rasgando-lhe o ventre, sendo acudido pela esposa e pela
mulata.
A polícia
chegou, mas é impedida de entrar no cortiço.
“Um
empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se
ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez.
[...] A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava
em qualquer estalagem, havia grande estropício; à caça de evitar e punir o jogo
e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava,
punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.”
Até que o
portão lascou e “os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram
recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros...”
Principiou
então o salseiro grosso: polícia versus moradores do cortiço, quando Nenen
gritou que havia fogo no número 12!
“A esse
grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio
lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho! Fez-se logo
medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais,
aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente
o que encontravam...[...] Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte
zuniu mais estridente e um grande pé-d´água desabou cerrado.”
XI
“A Bruxa,
por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou
incendiar o cortiço. Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes,
ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e
preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as consequências foram
do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela
ao fogo, não escaparam à devastação da polícia.”
Ninguém
foi preso e graças às chuvas, o incêndio foi acalmado.
Logo
cedo, João Romão furioso avaliou o seu prejuízo e concluiu que, “para cobrir o
dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o
aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros.”
João
Romão foi chamado à subdelegacia na secretaria da polícia e muitos moradores ou
por camaradagem ou curiosidade o acompanham como numa verdadeira romaria.
O
interrogatório, embora, fosse dirigido a João Romão, todos participaram
incriminando a política por ter invadido o local, onde apenas estavam se
divertindo. Dentro do cortiço, ninguém denunciava ninguém. Como pode ser
confirmado, quando o médico que atendeu Jerônimo perguntou-lhe o que havia
acontecido; e, a sua resposta foi: “- Estavam a brincar e sucedera aquilo!”
Rita
cuidou de Jerônimo o tempo todo.
“Agora
toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante
inofensivo, àquele Hércules tranquilo que mataria o Firmo com uma punhalada,
mas que, na sua boa fé, se deixara navalhar pelo facínora. [...] E ele,
tomava-lhe as mãos, e cingia-lhes a cintura, resignado e comovido, sem uma
palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de
animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.”
No dia
seguinte, Jerônimo foi encaminhado ao hospital, acompanhado pelas duas
mulheres.
De manhã,
Pombinha acordou indisposta. A mãe atribuiu a culpa por ela ter tomado muito
gelado na casa de Léonie. Realmente, a ida à casa de Léonie jamais apagaria de
sua vida.
A cocote
recebeu-a de braços abertos e assentou-se ao seu lado, fazendo-lhe muitas
perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo de olhos fechados. Às
duas da tarde, foi servido um lanche e champanha. Léonie demonstrava por
Pombinha “extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia
do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa”; enquanto que Dona
Isabel, que não estava habituada a beber, foi descansar.
Léonie
dirige-se à Pombinha e diz:
“– Vem
cá, minha flor!...disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um
divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!...Estou louca por ti!. [...] E
devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina,
enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na
sua simplicidade, não podia saber qual era.”
Léonie
levou Pombinha para o quarto e começou tocar em seu corpo e a despi-la.
Pombinha “com vontade de afastar-se, mas sem ânimo de protestar, por
acanhamento”, tentava reatar uma conversa, enquanto Léonie desabotoava-lhe o
vestido e dizia;
“– Que
tolice a tua...!Não vês que sou mulher, tolinha?...De que tens medo?...Olha!
Vou dar exemplo!”
A menina
negou despir-se e a cocote num movimento rápido desfez-se da roupa e investiu
na menina. Pombinha cruzou os braços sobre o seio e “apesar dos protestos, das
súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e
precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os
lábios o róseo bico do peito.”
Pombinha
pedia para ela parar, mas Léonie pondo em contato com o dela todo o seu corpo
nu; “o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito
de donzela impúbere e o roçar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos
nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a
pólvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos. Agora,
espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de
espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria, irracional, feroz,
revoluteava, em corcovos (pinotes) de égua, bufando e relinchando.
E
metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos
debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos
ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo
aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o
corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou
para o lado, exânime, inerte, os membros atirados num abandono de bêbedo,
soltando de instante a instante um soluço estrangulado.”
Pombinha
chorava e gritava que nunca mais voltaria a encontrá-la. A cocote animava-lhe,
beijando-lhe, enleando-a pelas pernas e comprometendo-se a ser a sua escrava, e
obedecer-lhe como um cachorrinho, contanto que aquela tirana não fosse assim
zangada... Depois do jantar, Léonie dá um anel com um diamante para Pombinha que
só aceitou por insistência de sua mãe.
Na manhã
imediata, Pombinha seguia constrangida e resolveu dar um passeio por detrás do
cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras. A menina sentia necessidade de
estar só e ao mesmo tempo, sentia-se arrependida, “toda a sua carne ria e
rejubilava-se, pressentindo delícias que lhe pareciam reservadas para mais
tarde, junto de um homem amado”.
Deitou-se
debaixo daquela sombra fresca, fechou as pálpebras e sonhou que em “redor ia
tudo se fazendo de um cor de rosa...[...] até formar-se em torno dela uma
floresta vermelha...E viu-se nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol
embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios....depois uma borboleta, sem
parar nunca (...) medrosa de tocar com as suas antenas de brasa a pele delicada
e pura da menina.”
Pombinha,
assim, despertou e sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas,
em uma onda vermelha e quente.
XII
Pombinha
correu desesperada para casa e ao encontrar sua mãe, “ergueu as saias do
vestido e expôs à Dona Isabel as suas fraldas ensanguentadas.”
A mãe
agradeceu a Jesus Cristo e abraçou-se às pernas da filha e, beijou-lhe a
barriga e parecia querer beijar “aquele sangue bom, que descia do céu, como a
chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.”
E, saiu
pelo pátio comunicando a notícia. Todos vieram parabenizá-las e davam
conselhos:
“Que não
apanhasse umidade! Que não bebesse coisas frias! Que se agasalhasse o melhor
possível e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama!”
D. Isabel
mandou chamar o João da Costa e fez um jantar para comemorar. Mas, desde o dia
da navalhada, a estalagem estava triste: não havia mais cantorias; Rita estava
aborrecida desde que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo foi proibido de entrar
no cortiço; Piedade depois da primeira visita ao hospital certificou-se de que
havia perdido o seu homem para a mulata e Bruno sentia saudades de Leocádia.
Mesmo
diante de tanta tristeza, Pombinha e João da Costa marcaram o dia do
casamento...
Bruno
procurou Pombinha e pediu que ela escrevesse uma carta à Leocádia, afinal:
“Coitada!
É mais doida do que ruim!” Pois se a gente até dos brutos tem penas!” E
finalizou a carta “...se ela quiser tornar pra minha companhia...que pode
vir...Eu esqueço tudo!”
Pombinha
ao ver Bruno chorar sentiu-se estranha, porque só depois que “ela formou-se
mulher”, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas
davam o bonito nome de amor. [...] ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos
homens...Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal
ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham
covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...E
continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro
sexo...[...] E viu Firmo e o Jerônimo atassalharem-se, como dois cães que
disputam uma cadela da rua; e viu o Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da
esposa infiel...; e viu Domingos, que fora da venda...perdendo o seu emprego e
as economias ajuntadas com sacrifício, só para ter um instante de luxúria entre
as pernas de uma desgraçadinha irresponsável e tola; e tornou a ver o Bruno a
soluçar pela mulher, e outros....” E, pensou no Costa que era como os outros
submisso, passivo e resignado. Pombinha sentia repugnância em dar-se ao noivo
e, se não fora a mãe, terminaria o noivado. Mas, chegou o dia do casamento...
XIII
O cortiço
crescia e agora, na mesma rua, germinava outro cortiço: o “Cabeça de Gato”.
Figurava como proprietário um português que também tinha uma venda, mas o
verdadeiro proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a
quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de
especulações. Romão temia um concorrente, entregou-o aos fiscais e colocou-o
seus moradores contra os do outro. Em pouco tempo, os dois cortiços já eram
inimigos. Começava ali uma rivalidade que não permitia que o habitante de um
cortiço migrasse para o outro; o peixeiro que falou mal dos “Carapicus” no
“Cabeça de Gato” acabou sendo encontrado morto.
“Os
habitantes do “Cabeço de Gato” (bandeira amarela) tomaram por alcunha o título
do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe que a Bertoleza
mais vendia à porta da taverna, foram batizados por “Carapicus” (bandeira
vermelha). Firmo logo, instalou-se no “Cabeça de Gato” e ganhou prestígio e
simpatias pelas suas façanhas e tornou-se chefe de malta. Seus encontros com
Rita passaram a ser furtivos.
Romão
desde que o Miranda conseguira o baronato transformou-se: fez roupas novas,
frequentou a barbearia, associou-se a um clube de dança, começou a usar
relógio, reformou a sua casa, trocou os móveis, instalou chuveiro, começou a
comer decentemente, passou a beber vinho, passeava no Passeio Público, ia ao
teatro, assinou o “Jornal do Comércio”, lia romances franceses traduzidos, admitiu
mais três caixeiro, passou a frequentar a Rua Direita e “principiava a meter-se
em altas especulações, aceitava ações de companhias de títulos ingleses e só
emprestava dinheiro com garantias de boas hipotecas.”
Miranda
vendo essa transformação tornou-se mais amável com Romão. Passou a
cumprimentá-lo e chegou a convidá-lo para o aniversário de D. Estela, mas Romão
não compareceu.
Bertoleza,
por sua vez, continuou a mesma: suja, atrapalhada de serviço, cada vez mais
escrava e rasteira, não participava das novas regalias do companheiro e caiu em
imensa depressão.
Botelho,
por sua vez, aproximou-se de Romão e um dia insinuou:
“- Aquela
pequena é que lhe estava a calhar, seu João!...
- Ali,
tudo aquilo é sólido!...Prédios e ações do banco!
- Se você souber levá-lo, apanha-lhe a
filha...”
Romão
tinha dúvidas se Zulmira o aceitaria, mas Botelho o tranquilizava afirmando que
a “menina foi criada a obedecer aos pais, sabe lá o que é não querer? Tenha
você uma pessoa, de intimidade com a família, que de dentro empurre o negócio e
verá se consegue ou não!”
Botelho
pediu 20 contos de réis para interceder nessa união e Romão oferecia dez.
“– Caso o
meu nobre amigo se decida pelos 20, receberá do Barão um chamado para lá ir
jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e encontrará o terreno
preparado.”
Botelho
não faltou com a palavra. Dias depois, Romão preparava-se para ir à casa de
Miranda.
Zulmira
ostentava seus 17 anos de idade e não parecia tão anêmica e deslavada.
Romão
tentou portar-se como um cavalheiro, porém só quando ganhou as ruas, sentiu-se
totalmente livre. Já em sua casa ao deitar-se ao lado daquela preta fedorenta a
cozinha e bodum (cheiro fétido) de peixe e, ver o negrume de suas pernas gordas
e lustrosas, lembrou-se do estorvo que “o diabo daquela negra seria para o seu
casamento”.
“Ainda
bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas
duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se veria
livre daquele trambolho?...”- E se ela morresse?...”
XIV
Passaram
três meses. Firmo continuava a encontrar-se com a Rita Baiana, mas a mulata
estava cada vez mais fria e a discussões eram contínuas entre o casal. Em um
domingo, Rita não apareceu e Firmo enfurecido foi vigiar o São Romão. Sem
novidades, decidiu entrar no botequim do Garnisé. Um mulatinho do “Cabeça de
Gato” sentou-se ao seu lado e comentou que o Jerônimo havia saído do hospital.
Jerônimo
ainda debilitado deixou o hospital, retornou a sua casa no cortiço e disse:
“– O que
me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o bom como o faz a
Rita...”
Piedade
prontamente foi chamar a Rita.
Jerônimo
confessou à mulata que:
“- Não
digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas coisas que
desejava...”
Rita
contou-lhe que despachou Firmo, que não tem e não quer mais nenhum homem.
Jerônimo
aproximou-se de Rita, apalpou-lhe a cintura de Rita, mas foram interrompidos
com a chegada de Piedade, anunciando que o Zé Carlos e o Pataca queriam
falar-lhe.
Os três
foram conversar num lugar mais discreto e Jerônimo foi informado que Firmo
vivia bêbedo no bar do Garnisé e que estava na hora de “liquidar a coisa hoje
mesmo!”
“- Ainda
estou muito fraco...observou lastimoso o convalescente.”
“- Mas o
teu pau está forte! E além disso cá estamos nós dois. Tu podes até ficar em
casa, se quiseres...”
Jerônimo
decidiu “fazer o serviço” naquela mesma noite e pagaria 40 pra cada um e depois
comemorariam com vinhos.
Ao cair
da noite Jerônimo encontrou-se com seus dois amigos. Os planos eram: Pataca
entraria no Bar do Garnisé, provocaria uma discussão com Firmo e chamaria o
Firmo para resolverem a confusão na rua. Beberam e saíram para o serviço.
XV
Pataca
entrou no Bar do Garnisé afetando grande bebedeira. Lá, encontrou Florinda
acompanhada por uma velha quase cega e um homem inteiramente calvo (Sr. Bento),
que sofria de asma. Ela contou-lhe que depois de fugir da estalagem, ficou na
rua e dormiu numas obras de uma casa em construção. E que no dia seguinte
oferecendo-se como criada ou de ama-seca, encontrou um velho solteiro e rico
que a tomou ao seu serviço e meteu-se com ela. Até o dia em que brigaram, e,
“como o vendeiro da esquina estava sempre a chamá-la para casa, um belo dia
arribou, levando o que apanhara ao velho.” Mas, “o tratante, a pretexto de que
desconfiava dela com Bento marceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a
pobre de Cristo trouxera da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo
e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera
com semelhante peste.“ “(...) O Bento tomara-a então à sua conta, graças a
Deus, por enquanto não tinha razões de queixa.”
Florinda
acrescentou que sua mãe, a Marciana estava internada num hospício.
Pataca
localiza Firmo no bar e fingindo estar bêbedo, convidou o “amigo” para beberem
mais e tentou convencê-lo a entregar o canivete a ele. Depois de muita
“conversa fiada”, Firmo comentou que estava sofrendo porque a Rita não havia
aparecido naquele dia. Pataca aproveitou-se da situação e contou que o Jerônimo
voltou à estalagem e instigou Firmo a procurá-lo. Em seguida, disse que viu a
Rita na Praia da Saudade acompanhada...
Firmo
decidiu procurá-la e Pataca acompanhou-o “amigavelmente”. Chegando ao local,
Pataca reconheceu os dois comparsas, desarmou o Firmo e covardemente os três
deram-lhe várias pauladas até que “tomados de uma irresistível vertigem de
pisar bem a cacete aquela trouxa de carne mole e ensanguentada, que grunhia
frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater
ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar.
Depois, arquejantes, deitaram a fugir, à toa, para os lados da cidade.”
Chovia
forte naquela noite. Jerônimo pagou aos comparsas o combinado e foram beber
para relaxarem e comemorarem.
Jerônimo
ao chegar estalagem, dirigiu-se a sua casa e pela fechadura viu que a luz
estava acesa.
Piedade
esperava-o aflita e “pensou sentir, vindo lá de dentro, o bodum azedo que ela
punha de si, fez uma careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa
da mulata...”
Rita
estava preocupada por não ter ido encontrar-se com Firmo justamente no dia, que
Jerônimo voltou à estalagem. Tinha medo e receio de uma nova briga.
“Amara-o
a princípio por afinidade de temperamento, pela irresistível conexão do
instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar
com ele por hábito, por uma espécie de vício que amaldiçoamos sem poder
largá-lo; mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua
tranquila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus
direitos de apuração, e Rita preferiu o europeu macho de raça superior. O
cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava a
esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a
volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de
Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual
dos bodes. [...] Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor
irracional e empírico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o trágico
incidente da luta, em que o português fora vítima. Jerônimo aureolou-se aos
olhos dela com uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que ama; cresceu com
aquela navalhada; iluminou-se com o seu próprio sangue derramado, e, depois, a
ausência no hospital veio a completar a cristalização do seu prestígio, como se
o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atrás de si a saudade
dos que o choravam.”
E,
Jerônimo amou-a logo que a viu, “porque sentiu nela o resumo de todos os
quentes mistérios que o enlearam voluptuosamente nestas terras da luxúria...”
Rita
escutou baterem à porta e ficou desesperada acreditando ser o Firmo. Ao abrir a
porta tremeu ao ver que se tratava de Jerônimo sujo de sangue. Jerônimo contou
que foi cuidar da vida deles e entregou-lhe a navalha de Firmo. Revelou que
matou o Firmo e que estava disposto a fugir com ela. Quanto à Piedade, ele
deixaria as suas economias e continuaria pagando o colégio da filha.
“– O que
não falta é p’r’onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim
uns quinhentos mil réis, para as primeiras despesas. Posso ficar cá até às
cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao
depois dizer o que arranjei, e tu irás ter comigo.
– Sim,
sim, meu cativeiro! Respondeu a baiana, falando-lhe na boca; eu quero ir
contigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração!”
[...]
“Jerônimo,
ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente
daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num eflúvio de
baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira mulata; ao sentir
esmagarem-se no seu largo e peludo colo de cavouqueiro os dois globos túmidos e
macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e
borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos
os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e
arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os
membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de
anjos violentados por diabos entre a vermelhidão cruenta das labaredas do
inferno.”
XVI
Piedade
ainda esperava por Jerônimo e sem ter notícias, temia que algo de ruim
tinha-lhe acontecido. Quando amanheceu, Piedade saiu desesperada à procura de
notícias de seu marido. Os curiosos
perguntavam todos os detalhes, numa boa disposição para fazer daquilo o
escândalo do dia.
Piedade
chorava e repetia: “– Forte desgraça a minha!”
O cortiço
já estava em sua movimentação costumeira e Piedade, “assentada à soleira de sua
porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em
que saíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo...”
A esposa
abandonada pôs-se a caminhar agitada, falando sozinha e amaldiçoando aquele sol
devasso que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de
bode.
“Lá, nos
saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça
e o maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das
queixadas; [...] lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e
meigo; seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que à tarde
levanta para o céu de opala o seu olhar humilde, compungido e bíblico.”
Ao passar
defronte do número 9 ouviu a Rita cantando. O cortiço já estava assanhado com a
notícia da morte do Firmo, os “Cabeça de Gato” incriminavam os carapicus e
juravam vingança.
Piedade
voltou enfurecida após saber que o marido fora visto na companhia do Zé Carlos
e o Pataca bebendo e andando na Praia da Saudades. A notícia, de certa forma,
aliviou-a e voltou correndo a casa disposta a brigar com Jerônimo, mas
surpreendeu-se a encontrar a porta trancada. Quando tomou ciência do
assassinato de Firmo outro pensamento veio-lhe a mente:
“– Se ele
matou o Firmo, dormiu na estalagem e não veio ter comigo, é porque então
deixou-me de feita pela Rita!”
Piedade
ao ver Rita “pegaram-se logo a unhas e dentes. [...] Dois partidos todavia se
formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e
quase todos os portugueses pela outra...(...) E as palavras “galego” e “cabra”
cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas.”
[...] “De
repente, uns quarenta e tantos homens de pulso invadiram a estalagem. O pátio
estava quase cheio; ninguém mais se entendia; todos davam e todos apanhavam.
[...] Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao
Brasil. Mas, no melhor da luta, ouvia-se na rua um coro de vozes que se
aproximavam das bandas do “Cabeça de Gato”. Era o canto de guerra dos capoeiras
do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com sangue a
morte de Firmo, seu chefe de malta.”
XVII
Os
moradores da estalagem pararam de brigar entre si e armaram-se para enfrentar
um novo inimigo. Agora não eram mais portugueses versus brasileiros; mas, sim,
um partido que ia ser atacado pelo partido contrário. Porfírio vinha na frente
e os capoeiras distribuíam golpes para todos os lados, quando avisaram que um
incêndio no número 88 estava eclodindo.
“Houve
nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se
o hino de morte. Um clarão tremendo ensanguentou o ar, que se fechou logo de
fumaça fulva. A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o
cortiço ia arder...(...) A luta ficava para outra ocasião.”
Os
moradores correram para tentar salvar seus pertences. A bruxa surgiu à janela da sua casa rindo,
quando se viu o desabamento da casa incendiada, sepultando a louca entre as madeiras
em brasa. Polícia, bombeiros e uma multidão tentavam acalmar as labaredas.
XVIII
Romão ao
ver o velho Libório correndo ao seu esconderijo, seguiu-o e vendo o coitado
tirar do seu colchão algumas garrafas tentou ajudá-lo. Libório agarrado as
garrafas e vomitando sangue mordia as mãos do vendeiro. Romão consegue arrancar
as garrafas do velho e foge dali levando as garrafas cheias de dinheiro e,
deixando Libório “sem conseguir por-se de pé, rastreava na pista dele, rosnando
uns vagidos de morte, os olhos turvos, todo ele roxo, os dedos enriçados como
as unhas de abutre ferido.”
No dia
seguinte, a polícia averiguou os destroços do incêndio e buscou vítimas. Rita
desaparecera da estalagem no momento da confusão; Piedade estava de cama com
uma febre de quarenta graus; uma filhinha da Augusta, a Carne-Mole morrera
esmagada; das Dores, uma cabeça partida; a Machona Leandra, uma orelha rachada
e um pé torcido; Bruno fora anavalhado na coxa; um italiano perdera os dentes
da frente; dois trabalhadores da pedreira estavam feridos gravemente e todos se
queixavam da má sorte. Bruno vai para o hospital da Ordem e Leocádia vai
visitá-lo.
Sr.
Miranda apareceu para dar os pêsames, mas, ao mesmo tempo felicitou Romão de
ter assegurado a estalagem. O vendeiro após a primeira tentativa de incêndio
tratou de segurar todas as suas propriedades e agora, em vez de o fogo
trazer-lhe prejuízo, até lhe dava lucros. Enquanto que os infelizes moradores
tentavam salvar seus cacarecos, Miranda comentava com maldade que eles não
tinham nada para perder.
Romão
expôs os seus planos de reconstrução da estalagem. Miranda ouviu com atenção e
concluiu que “pena é estar metido com a peste daquela crioula! Nem sei como um
homem tão esperto caiu em semelhante asneira!”
Só depois
de ter certeza de que Bertoleza dormia, Romão foi contar o dinheiro das
garrafas roubadas de Libório. Grande quantidade das cédulas era prescrita.
Depois, conformou-se. Afinal, fez um ato de justiça impedindo que todo aquele dinheiro
apodrecesse.
“Sim! Se
havia nisso ladroeira, queixassem-se do governo! O governo é que era o ladrão!”
XIX
Nos dias
seguintes, a reforma do cortiço avançou e aqueles que ficaram sem moradia foram
ajeitando-se desordenadamente pelos cantos à espera dos novos cômodos, mas
ninguém se mudou para o “Cabeça de Gato”.
Bruno
estava hospitalizado na Ordem, Leocádia foi visitá-lo e lá, reataram a sua
relação. Piedade após o abandono do marido envelhecera, mas não se queixava, e
ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
A reforma
do cortiço também alcançou a venda, onde levantou um sobrado mais alto e mais
vistoso que do Miranda.
Agora,
todos os domingos, Romão jantava na casa do Miranda, iam ao teatro e andava de
braços dados com a Zulmira, dava-lhe presentes, procurando sempre galanteá-la.
Bertoleza
percebeu tudo calada, submissa, sem ânimo de reclamar os seus direitos.
“Na sua
obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a mísera
desejava, era somente confiança no amparo da sua velhice quando de todo lhe
faltassem as forças para ganhar a vida. [...] Adorava o amigo, tinha por ele o
fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam,
dessas que morrem de ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar
ao seu ídolo a vergonha do seu amor.”
Bertoleza
deixou de ser a amante do vendeiro e tornou-se somente sua escrava. Um dia,
ouvindo Botelho incentivar Romão a pedir “a mão” de Zulmira, Bertoleza não se
conteve e chorou muito.
Por outro
lado, Jerônimo morava com Rita numa estalagem da Cidade Nova e trabalhava na
pedreira de São Diogo, onde trabalhava dantes. As despesas eram altas, tiveram
que comprar todos os arranjos da casa e não pouparam nos apetrechos. Até um
banheiro próprio construíram, porque o da estalagem repugnou à baiana.
Nos
primeiros dias, os dois viveram em plena lua de mel. Jerônimo se transformou
totalmente: a guitarra substituiu-a pelo violão e a baiana deu-lhe uma rede e
um cachimbo, apresentou-lhe as cantigas do norte, as comidas típicas da Bahia,
o temperado com azeite de dendê, muquecas, cachaça...
“O
português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das
extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o
espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se
todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela,
só ela, e mais ninguém.”
Piedade
também se transformou e passou a beber todos os dias para enganar os pesares.
“Fez-se
madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bulir nas
economias que Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela
pobrezinha orfanada antes da morte dos pais.”
Os seus
únicos momentos de contentamento eram com a visita de sua filha, que o pessoal
da estalagem passou chamá-la por “Senhorinha”.
Um dia a filha
entregou à mãe um aviso de cobrança de seis meses da pensão do colégio. Piedade
sabia o endereço de Jerônimo e foi cobrá-lo.
Jerônimo
surgiu com “um ar triste de vicioso envergonhado que não tem ânimo de deixar o
vício. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda a energia com que chegara e
comoveu-se tanto, que as lágrimas lhe saltaram dos olhos às primeiras palavras
que lhe dirigiu. [...] Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a
com brandura, quase a pedir-lhe perdão...
– Minha
pobre velha...balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.”
Esse
simples gesto trouxe novamente esperanças à Piedade que sentiu desejos de se
jogar nos braços de Jerônimo. Contava ouvir desaforos de Jerônimo; mas
encontrá-lo desgostoso, “sua alma postou-se reconhecida [...] Jerônimo deixou
que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro e depois à cintura da esposa,
ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explosão de soluços
que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.
–
Consola-te! Que queres tu?...São desgraças!...disse o cavouqueiro afinal,
limpando os olhos. Foi como se eu tivesse te morrido...mas podes ficar certa de
que te estimo e nunca te quis mal!...Volta para casa; eu irei pagar o colégio
de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me
perdoe os desgostos que te tenho eu dado!”
Jerônimo
não conseguiu cumprir a promessa e isso, deixou-o apreensivo. O problema era
que Rita vivia de luxos e ele receou contrariá-la e perdê-la.
A segunda
aparição de Piedade foi acompanhava pela filha e surpreendeu-o embriagado numa
roda de amigos.
Jerônimo
chamou à baiana e fez que Piedade e a amante abraçassem-se, perdoassem-se e
insistiu para que elas jantassem juntas. Durante o jantar, Piedade reclamou de
sua vida e chorou. Jerônimo deu um soco na mesa e ordenou que ela pagasse a
conta do colégio com o dinheiro que ele havia deixado. E, acrescentou que a
filha já não precisava de colégio e que viesse morar com ele.
“– Ó
mulher! Você não está separada dela a semana inteira?...Pois a pequena, em vez
de ficar no colégio, fica aqui, e aos domingos irá vê-la. Ora aí tem!
- Eu
quero antes ficar com minha mãe!...balbuciou a menina, abraçando-se a Piedade.
- Ah!
Também tu, ingrata, já me fazes guerra?!Pois vão com todos os diabos! E não me
tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com que arreliar-me!”
Rita não
se envolveu na contenda, esperou as duas saírem, aproximou-se de seu homem e
beijou-lhe. Enquanto isso, no portão da estalagem, Piedade com sua filha
tentavam controlar suas lágrimas.
XX
Já em sua
casa, Piedade bebeu e saiu para o pátio.
“Mas o
cortiço já não era o mesmo...O pátio, como João Romão havia prometido,
estreitara-se com as edificações novas; agora parecia uma rua...Fizeram-se seis
latrinas, seis torneiras de água e três banheiros. Desapareceram as hortas, os
jardins...e os imensos depósitos de garrafas vazias. [...] De cento e tantos, a
numeração dos cômodos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e
pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e goteiras encarnadas.”
[...]
“João
Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e
mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi
abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira,
e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre ela
e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento,
imitando pedra...e na tabuleta nova [...] lia-se em letras caprichosas: AVENIDA
SÃO ROMÃO.”
O Cabeça
de Gato estava totalmente vencido e desmoralizado perdendo seus moradores para
os carapicus.
Num
domingo, durante a reunião de um grupo com viola, Piedade apareceu e depois de
beber, começou a tomar interesse no pagode. Romão ao chegar ao cortiço
encontrou-a a “dançar ao som de palmas, gritos e risadas, no meio de uma grande
troça, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender arremedar a Rita no
seu choradinho da Bahia. Era a boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e
com o pé embaraçavam-lhe as pernas, para a ver cair e rebolar-se no chão.”
Romão pôs
ordem no ambiente e recebeu protestos principalmente de Piedade e de Pataca. O
casal se recolheu a casa de Piedade e depois de comerem, beberem, Piedade
explicou a causa do sucedido naquela tarde. Pataca, então, tentou seduzi-la.
Na
cozinha, com a desculpa de fazer um café, Pataca agarrou e arrastou Piedade ao
chão, até conseguir saciar-se nela. No momento em que Pataca retornou à sala
deu de encontro com a Senhorinha, que tinha acordado e no escuro assistiu a
tudo.
Pataca
retornou imediatamente à cozinha e encontrou Piedade no chão adormecida. Ao
tentar levantá-la, ela vomitou e foi preciso arrastá-la para a cama. A menina
chorou ao ver o estado da mãe e Pataca saiu furioso por não ter tomado café.
XXI
João
Romão passeava em seu novo quarto, pensando em um meio de livrar-se de
Bertoleza que agora dormia embaixo de um vão de escada, aos fundos do armazém,
perto da latrina. Romão sentia-se pressionado por Miranda e D. Estela que
queriam marcar a data de casamento.
“Como
poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o demônio da
crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia
disso? E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranquilo obstáculo
que lá estava embaixo, a dormir...”
No
entanto, a sua união com Zulmira significava fazer-se membro de uma família
tradicionalmente orgulhosa e aumentava os seus bens com o dote da noiva, além
de herdar mais tarde o que o Miranda possuía, realizando-se deste modo, um
velho sonho que o vendeiro afagou desde o nascimento da sua rivalidade com o
vizinho: tornar-se “um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil”,
conquistar o título de Visconde e mais tarde, de Conde! Depois, iria à Europa,
“pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!”
“Bertoleza
devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo o que havia de mau na
vida dele! Seria um crime conservá-la a seu lado! Ela era o torpe balcão da
primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o
peixe trazido da praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à porta da
taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas à portuguesa; era
o sono roncado num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a sua cúmplice e
era todo seu mal – devia, pois, extinguir-se!”
Romão,
então pensou matar “aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o
grande estorvo da sua ventura!” Mas, ao se aproximar da crioula, ela despertou
e perguntou o que estava acontecendo...
“Se eu a
tivesse despachado logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém
desconfiaria da história...Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida;
depois da separação das camas, e principalmente depois que corresse a notícia
do casamento, não faltaria decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse morta
de repente!”
De manhã,
o cortiço foi surpreendido por mais uma desgraça. Agostinho despencou da
pedreira quando brincava com mais dois moleques e faleceu.
Botelho
persiste em convencer Romão despachar Bertoleza, afinal “o dente que já não
presta arranca-se fora!”
Bertoleza
apareceu na sala e “a indignação tirava-lhe faíscas dos olhos e os lábios
tremiam-lhe de raiva:
“– Você
está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira à toa! exclamou
ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de
roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar
pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até
pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha
podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!”
Romão
confirmou que pretendia casar-se com Zulmira, mas que não a deixaria
desamparada e já estava negociando uma quitanda para ela. Bertoleza responde:
“– Não!
Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um
descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor me deu
força e saúde! [...] Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois
ganhamos juntos! Quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! Quero
o meu regalo, como você quer o seu! [...] quando você precisou de mim não lhe
ficava mal servir-se de meu corpo aguentar a sua casa com o meu trabalho. Então
a negra servia para tudo; agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no
monturo do cisco! [...] quer casar, espere então que eu feche primeiro os
olhos; não seja ingrato.”
Romão
ficou raivoso e saiu. Botelho tentou acalmá-lo e perguntou-lhe se Bertoleza era
escrava quando a conheceu. Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro que
estava planejando interná-la no Hospício de Pedro II. Romão resolveu entregá-la
ao seu antigo dono, Freitas de Melo e restituí-la legalmente à escravidão. Era
só denunciá-la que o seu senhor viria buscá-la com a polícia. E contratou
Botelho para efetuar o serviço mediante o pagamento de duzentos mil réis.
XXII
Desde a
discussão com Miranda, Bertoleza só trocava algumas palavras necessárias com o
vendeiro; só comia comidas que ela mesma preparava e só dormia depois de
trancar-se a chave.
Os
negócios de Romão continuavam prosperando: “fizera-se o fornecedor de todas as
tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se lá para vender
a retalho.” A sua casa tinha agora um pessoal complicado de caixeiros,
guarda-livros, despachante; do seu escritório saíam correspondências em várias
línguas; faziam-se contratos comerciais, transações em que se arriscavam
fortunas; negociações de empresas e privilégios obtidos do governo;
realizavam-se vendas e compras de papéis; concluíam-se empréstimos de juros
fortes sobre hipotecas de grande valor e como a casa comercial de Romão a sua
avenida também prosperava. Muitos moradores já não conseguiam pagar o aluguel
da casinha e acabavam mudando-se para o “Cabeça de Gato” e as casinhas eram
ocupadas agora por pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de
secretaria.
Florinda
agora amigada com um despachante de estrada de ferro voltou para o São Romão e
lamentava-se pela morte de sua mãe, a velha Marciana, no hospício. Não mais se
admitiam pagode e provocações ao relento. A Machona, depois da morte de
Agostinho estava mais calma e havia um pretendente à mão de Nenen; Alexandre
fora promovido a sargento e Léonie continuava a visitar o cortiço, agora
acompanhada por Pombinha, que se atirou ao mundo e vivia agora em companhia da
madrinha.
A filha
de D. Isabel já nos seus primeiros anos de casada não suportou a mesmice de seu
marido; todavia, a princípio, para conservar-se mulher honesta, tentou
perdoar-lhe a falta de espírito, até que “faltou-lhe o equilíbrio e a mísera
escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta,
jogador e capoeira.” Costa, um dia, seguiu sua esposa e pegou-a em flagrante,
não mais com o poeta libertino, e, sim, com um artista dramático. Rompeu com a
esposa adúltera, entregou-a a mãe e mudou-se para São Paulo.
D. Isabel
tentou interceder pelo casal, escreveu ao genro pedindo para que ele perdoasse
Pombinha, mas não obteve resposta.
Passados
alguns meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe e foi morar num hotel junto
de Léonie. A mãe jurou que a filha estava morta para ela, mas sem forças para
se manter, aceitou de cabeça baixa o dinheiro da prostituição, que Pombinha
mandava.
“Depois,
como neste mundo uma criatura a tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a
casa da filha. Mas não aparecia nunca na sala quando havia gente de fora,
escondia-se; e, se algum dos frequentadores de Pombinha a pilhava de improviso,
a infeliz, com vergonha de si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O
que mais a desgostava, e o que ela não podia tolerar sem apertos de coração,
era ver a pequena endemoninhar-se com champanha depois do jantar e por-se a
dizer tolices e a estender-se ali mesmo no colo dos homens.”
D. Isabel
deprimida, desgostosa e enferma foi internada num hospital e lá, faleceu.
Pombinha
era mestra na arte do prazer e “seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar
sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o
dinheiro que a vítima pudesse dar de si.”
Ela,
Léonie e a Juju continuavam visitando o São Romão e, lá, continuava sendo vista
como a querida mestra.
Pombinha
tinha uma simpatia especial pela filha de Piedade, idêntica à que noutro tempo
fora inspiração à Léonie.
“A cadeia
continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma
nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado
de uma infeliz mãe ébria.”
E a casa
de Piedade sobrevivia graças às esmolas de Pombinha.
“(...)
vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, dessa embriaguez sombria e
mórbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era o mais imundo e o pior de
toda a estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez,
aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz.”
Até que
um dia, despejaram-lhe seus cacarecos na rua e ela e a filha se mudaram para o
Cabeça de Gato.
XXIII
Romão,
ex-taverneiro e futuro visconde, espera pela família do Miranda à porta de uma
confeitaria da Rua do Ouvidor, quando Botelho chegou trazendo a notícia de que
encontrara o antigo dono de Bertoleza e que era importante a presença dele no
momento da entrega da escrava.
Romão
queria evitar esse constrangimento, mas Botelho insistiu afirmando:
“– Que
diabo lhe custa isto?...Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da
lei, e você a entrega – pronto! Fica livre dela para sempre, e daqui a dias
estoura o champanha do casório! Hein, não lhe parece?
– Ela há
de choramingar, fazer lamúrias e coisas, mas você põe-se duro e deixe-a seguir
lá o seu destino!...Bolas! não foi você que a fez negra!...[...] faça como
coisa que não tem nada com isso, compreende?
– Como,
filho, se você não a alugou das mãos de ninguém?!...Você não sabe lá se a
mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora aparece o dono,
reclama-a e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe não pertence!
Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe dará
qualquer coisa.”
Durante o
caminho, Botelho e Romão cruzaram uma carruagem, que levava Pombinha e
Henriquinho, agora no seu quarto ano de medicina e que vivia à solta com outros
da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico.
Depois do
jantar, um empregado veio avisar que um senhor acompanhado de duas praças
desejava falar ao dono da casa.
Romão
recebeu os visitantes e leu a folha de papel que lhe fora entregue.
Dissimulando estar chocado, disse que pensava que Bertoleza fosse livre.
“Atravessaram
o armazém [...] chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito
subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras, no chão, escamando peixe, para
a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio
percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação;
adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que
tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era mentira, e que o seu
amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
[...] Os
policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza
então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que
alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o
ventre de lado a lado. João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém,
tapando o rosto com as mãos.
Nesse
momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas
que vinha de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.”
X –
CONSIDERAÇÔES FINAIS:
1. O
ROMANCE SOCIAL:
Desistindo
de montar um enredo em função de pessoas, Aluísio atinou com a fórmula que se
ajustava ao seu talento: ateve-se à sequência de descrições muito precisas,
onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem, no conjunto, do
cortiço a personagem mais convincente do nosso romance naturalista.
Todas as
existências se entrelaçam e repercutem umas nas outras. “O Cortiço” é o núcleo
gerador de tudo e foi feito à imagem de seu proprietário, cresce, se desenvolve
e se transforma com João Romão.
2. A
CRÍTICA DO CAPITALISMO SELVAGEM:
O tema é
a ambição e a exploração do homem pelo próprio homem. De um lado João Romão que
aspira à riqueza e Miranda, já rico, que aspira à nobreza. Do outro, a
gentalha, caracterizada como um conjunto de animais, movidos pelo instinto e
pela fome.
No espaço
de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das personagens caindo no
código antirromântico de despersonalização; para o narrador, no Cortiço, já não
se distinguem homens de animais, objetos ou vegetais.
3. O
DETERMINISMO:
"O
Cortiço" é o grande representante do naturalismo no Brasil. Essa obra
caracteriza-se principalmente pelo aspecto experimental nela desenvolvido,
analisando o homem como um simples produto da hereditariedade e do meio em que
vive.
É a
despeito das descrições minuciosas do ambiente e do cuidadoso estudo dos
elementos biográficos a cerca dos indivíduos que Aluisio constrói uma narrativa
extremamente relacionada aos fatores externos. Não há interesse em descrever o
aspecto psicológico das personagens, o que predomina é a intenção de mostrar,
de maneira fria e precisa, como o homem age sobre o meio e vice-versa.
Para
Sodré (1995), “O Cortiço pinta o cenário urbano do final do século XIX e nele
está perfeitamente fotografada a sociedade desse tempo, com as suas mazelas e
as suas chagas. O autor desse livro não se propõe a solucionar os problemas da
sociedade, mas sabe colocá-los em suas verdadeiras dimensões”.
Não é por
acaso que toda a trama do romance relaciona-se com o cortiço e sua gente. Por
tratar-se de uma habitação coletiva, povoada por seres marginalizados, o autor
pode facilmente explorar como se processa o comportamento dessa coletividade.
Faz-se latente uma critica social, cujo papel é denunciar a podridão da
sociedade, ganhando nesse sentido, também, um caráter documental, pois os fatos
estão estreitamente voltados para a realidade.
Na obra é
possível fazer a análise do pensamento de Taine: não há nenhuma expectativa de
movimentação social dos moradores do cortiço, relegadas assim às determinações
de maneira suposta já definidas étnicas (raça), social (meio) e historicamente
(momento), como acreditavam os naturalistas, identificando em Bertoleza esse
determinismo nos três aspectos: sendo que, no aspecto Raça, identificamos na
personagem o fato de ser negra, e, além disso, escrava, sabendo que o romance é
de uma época abolicionista, em que acontecia a abolição, no entanto, os
escravos permaneciam em situação de vulnerabilidade social, passando a ser
escravo fora da senzala, “- agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr
melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta ” enquanto
esse trecho dá a idéia de libertação, já este “varria a casa, cozinhava, vendia
ao balcão na taverna (...) à noite passava-se para a porta da venda (...)
fritava fígado e frigia sardinhas ...”, nos remete a outro tipo de escravidão.
Acerca do
Meio percebe-se que o espaço do cortiço influencia de tal forma nos
comportamentos dos que ali habita que mesmo os vindos de outro país, mudam seus
hábitos e sua personalidade, tornando-se pessoas de hábitos inferiores, como é
o caso do personagem Miranda, que ao morar no cortiço diminui consideravelmente
seu status social e seu poder financeiro, sendo isso influencia do meio, isto
posto, também Bertoleza sofre essa influencia, morando no cortiço não poderia
fugir da sua condição.
Por fim,
na análise do Momento Histórico, a personagem é influenciada de forma ainda
mais brusca, já que, se despedindo do regime escravocrata, a sociedade do
século XIX é também burguesa, como já citamos, o negro escravo, submisso, cheio
de características execráveis, é retratada na personagem.
O mesmo
fato não se repetiu em Jerônimo, também branco e português que se mudou para o
cortiço e foi trabalhar na pedreira. Apesar de Jerônimo pertencer à plebe, a
mudança operou-se nele ao contrário da realizada em João Romão. Ligado às
tradições lusitanas, a família e muito trabalhador, a influência do meio agiu
sobre o cavouqueiro de forma degradante.
“Jerônimo
abrasileirou-se” após a mudança para o cortiço, mas o fator decisivo para essa
transformação foi a sua paixão pela mulata Rita Baiana, que era muito dada a
patuscadas. Esse processo ocorreu lentamente, porém foi definitivo como podemos
constatar:
Mais uma
vez o determinismo se impõe não só na figura do português, mas também no
estereótipo da mulata brasileira. Rita como mulata é um tipo que referencia a
sensualidade, característica atribuída á mulher negra desde o início da
sociedade brasileira.
A
trajetória da mestiça em nossa sociedade principia com o regime de escravidão,
em que a negra realizava todo tipo de tarefas, assim como tinha por dever
satisfazer os desejos sexuais de seus senhores que não podiam realizá-los com
as esposas.
A negra
cedeu lugar a mulata que se mostrava mais bela nas feições e ainda reunia os
dotes exóticos da mestiça. Essa marca perpetuou-se por toda a história dessas
mulheres que continuaram, e ainda hoje continuam a serem vistas como objeto de
satisfação sexual masculina.
A
propósito da mulata na obra de Aluísio, podemos notar esses mesmos aspectos
pela forma como ele refere-se a Rita:
“Os
meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível,
simples, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito
de mulher”.
Toda a
discrição da mulata segue a teoria naturalista, condicionando-a aos fatores de
raça e ambiental. Esse tal determinismo que impõe ao indivíduo características
e sobre o qual ele não exerce nenhuma defesa, poderia, então, ser encarado
simplesmente como uma análise fria e imparcial da sociedade ou como uma forma
disfarçada de preconceito.
4. O
IMIGRANTE PORTUGUÊS:
Tematizando
a problemática da migração, pode-se constatar nas obras de Aluísio Azevedo, um
posicionamento epigramático, sobretudo, em “O Cortiço” (1890). É atribuído ao imigrante português o centro
de embate da obra. Assim, de um lado está João Romão, dono de um comércio de
secos e molhados, que por meio de todas as ilegalidades possíveis, fez-se
proprietário de um cortiço, em oposição ao patrício Miranda, que sendo dono de
um sobrado, constituía-se a base da inveja que imperava nas vísceras de João
Romão de modo a privar-se de todo conforto na quase insuportável escalada ao
topo do status quo. “Travou-se então uma luta renhida e surda entre o português
negociante de fazendas por atacado e o português negociante de secos e
molhados” (Azevedo, 1993, p.27).
A partir
de tal polaridade, são estabelecidos inúmeros elementos carnavalizadores no
texto: o cortiço, que se arrastava por sobre os sonhos do proletariado que ali
se instalava (sobretudo a mão de obra da população local que se contrapunha a
dos imigrantes pobres que vinham em busca de melhores condições de vida),
tornava-se o eixo contraposto ao sobrado, que ostentava as regalias do
português rico, embora “escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos
de virtude”. Enquanto João Romão lutava contra os próprios limites do corpo com
uma carga de trabalho brutal, a fim de obter fortunas, Miranda vencia o orgulho
próprio ao ter que relevar as traições da esposa, fonte da sua loja de fazenda
por atacado. A figura do imigrante “forasteiro e aproveitador” configura-se na
postura de ambos, embora em circunstâncias adversas.
“Feliz e
esperto era João Romão! Esse, sim,
senhor! Para esse é que havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje
tão livre e desembaraçado como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu!
esse, sim, que era moço e podia ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse
a casar e a mulher lhe saísse outra Estela, era só mandá-la pra o diabo com um
pontapé! Podia fazê-lo! Para esse é que era o Brasil.” (AZEVEDO, 1993, p.33)
Na obra,
a personagem Jerônimo, passando por um processo de transculturação recebeu em
igual proporção os malefícios de uma identificação, que sendo imposta aos
nativos pelo europeu, ainda impera como referente característico dos
brasileiros, como se “malandros” fossem dentro da liberdade de adequação, sem a
sujeição aos paradigmas impostos pelos colonizadores.
“Uma
transformação, lenta e profunda, operava-se nele (...) A vida americana e a
natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o
comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar
felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal... e volvia-se
preguiçoso, vencido, às imposições do sol e do calor (...) E curioso é que
quanto mais ele ia caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus
sentidos se apuravam...”.
A
identidade nacional reconhecida na obra é constituída de elementos degradantes:
Jerônimo arruinou-se, “abrasileirou-se para sempre” – vítima dos males advindos
por ação dos seus patrícios, sim. A cultura brasileira foi construída,
sobretudo por quem? Jerônimo é a síntese mimética da personalidade fabricada
pela aculturação.
5. SEXUALIDADE DA MULATA VERSUS O IMIGRANTE
PORTUGUÊS:
No que
diz respeito à problemática sexual, brotam do hibridismo étnico da terra os
elementos utilizados por Aluísio Azevedo para destacar o papel da sexualidade
instintiva, mormente no que tange ao papel da “mulata literária”. Demonstra,
por meio dela, a animalidade sexual a que se submete a condição humana diante
dos preceitos da corrente naturalista. Rita Baiana, por exemplo, “é o perfil
mais acabado desse ‘elemento perigoso’ que habitou o mundo ficcional brasileiro
dos oitocentos” (Jean Marcel Carvalho França).
Rita
representa a visão da mulata predominante na época. Arrastando pelas curvas do
corpo dançante o veneno da sedução, envolveu Jerônimo – amarrando-o à sua
lasciva influência, cuja libidinosidade destitui-lhe todas as virtudes. Ela
surge convertida no fator de corrosão do caráter autóctone do português,
transculturando-o.
Rita, com
o cheiro da terra impregnado à sua pele, submete o estrangeiro, colocando-o aos
seus pés. Todavia, mulata, portanto híbrida, já levava em si os traços
identitários que a tornavam embebida da torpe malandragem que constituía a
máscara representativa do brasileiro.
“- Aquela
não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo
no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo, vai tudo
pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!” (op. cit., p.48)
Na
análise desta segunda personagem, vale ressaltar seu estereótipo de mulher
baiana, sensualidade e rebeldia, características presentes em toda obra sempre
que se referi a esta personagem. Contrária ao retrato da mulher idealizada
romântica, Rita é a mulher independente e rebelde, que diferente de Bertoleza,
oprime e seduz os homens, desmoronando a idéia de modelo patriarcal da
sociedade em que a mulher era apenas objeto, Rita Baiana criticando até mesmo a
instituição casamento vai contra toda uma ordem estabelecida.
“- Casar?
Protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Pra quê? Para
arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é
escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do
que é seu!”
Essa visão que o autor tem de Rita Baiana,
segue a visão da sociedade da época.
6. A
FUNÇÃO DA MULHER NO SISTEMA DE TRANSFORMAÇÃO:
Como
vimos anteriormente a mulher participa do regime de trocas, ela dá e recebe. A
posição da mulher na estética naturalista, no entanto, é bem diversa daquela na
estética romântica. Descrita mais objetivamente, enraizada na realidade, ela
surge sem as idealizações e falseamentos. Nessa narrativa de Azevedo, a mulher
é descrita principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses
físicos e materiais. São elas:
a) a
mulher-objeto que é trocada como nas sociedades primitivas;
b) a
mulher sujeito-objeto que aceita as regras do sistema dando tanto quanto
recebe;
c) a mulher-sujeito
que regula os regimes de troca capaz de impor condições.
A
prostituição francesa, fator incomum à cultura nativa, transcorre nas linhas do
livro, pela força sedutora de Léonie, tornando-se também um imperativo de
exploração a meninas como a doce Pombinha e outras possíveis presas “chocadas”
sob o corpo pesado do cortiço de João Romão. A prática da prostituição foi
herança do colonizador – servir-se, sexualmente, das índias resolveria a
difícil tarefa de colonizar, vencendo as adversidades climáticas, sem a
presença da mulher branca.
Ambos os
comportamentos são explicados pela influencia das idéias vigente na época,
especialmente do “ambientalismo de Taine”, que acredita firmemente no
determinismo acreditando que o meio, raça e momento histórico determinam o ser
- humano tal teoria explicaria os comportamentos das personagens aqui
estudadas, O cortiço, por se tratar de um lugar onde não há condições descentes
de sobrevivência, determinaria o “ser” de Rita Baiana, Bertoleza, Pombinha e
Léonie.
7.
HOMOSSEXUALIDADE RETRARADA EM “O CORTIÇO”:
A
homossexualidade feminina retratada em “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo
(Pombinha e Léonie) visa identificar acerca das condições da mulher lésbica no
naturalismo: é visto como doentio, anormal, patológico. Assim as personagens
apresentam desvios. O naturalismo é material, é do corpo não humano. Retratando
a realidade de forma objetiva, descrevendo grupos marginalizados. A exclusão do
homossexual é bastante antiga, entretanto o naturalismo acrescenta elementos
que mostram essa predileção em retratar mazelas e chagas da sociedade.
A mulher
no naturalismo era tratada como objeto sexual, e tudo sobre os desvios na
sexualidade estavam relacionados a fatores internos e externos. Portanto,
Léonie seria definida como mulher pervertida, impura, aquela que tem que ser
banida, pois é um "mal" que assola a sociedade e pode contaminar os
que conviverem com ela. Pombinha é fraca, nervosa, doente, enfermiça, doente,
loira, muito pálida, sua sensualidade associada a doses de inocência, pureza,
boa família, asseada.
A
personagem tem a figura da mãe, que a protege e a figura do pai, um homem que
fracassa e comete suicídio. Talvez essa figura do pai seja substituída pelas
carícias e mimos de sua madrinha Léonie, que perverteu Pombinha desviando-a
para uma vida de prostituição, sexo e embriagues. Pombinha toma Léonie como
espelho, modelo de vida a ser seguido.
“Arrancou-lhe
até a última vestimenta e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo,
a empogar-lhe os lábios, o róseo do peito (...), deixando ver preciosidades de
nudez fresca e virginal (...).”
“Espolinhava-se
toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao
passo que a outra, por doida de luxuria, irracional, feroz, reluteava, em
corcovos de égua, bufando e relinchando. E metia-lhe a língua tesa pela boca e
pelas orelhas e esmagavava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de
espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros (...) devorou-a num abraço (...)
ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos.“
A ruptura
acontece quando Pombinha se separa do seu marido, após adultério. Atirou-se as
coisas mundanas e foi morar com Léonie, mais sustentava a mãe com o dinheiro da
prostituição, a qual se tornou perita e com sua sagacidade, conquistava todos
os homens.
Pombinha
tinha uma afilhada e a tratava com a mesma simpatia que fora tratada por
Léonie. "A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço
estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se
fazia mulher".
8. SÃO
ROMÃO VERSUS CABEÇA-DE-GATO:
Na medida
em que Romão vai evoluindo econômica e socialmente, “São Romão” sofre um
processo de modificações também qualitativas até chegar à Av. São Romão. Alinha
de ascensão do cortiço é a mesma de seu proprietário que, na verdade, funciona
como uma metonímia de seu conjunto. Enquanto isso: o “Cabeça-de-Gato” à
proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando
acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo
satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu
ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem
fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por
noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos;
viveiros de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na
mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a
vida brutalmente, como de uma podridão”.
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